quinta-feira, 26 de junho de 2025

Revisitando o Problema: O Dilúvio nas Tradições de Diversas Culturas Antigas - Parte 4

Por Walson Sales

A polêmica sobre as semelhanças entre o relato bíblico do dilúvio e os relatos mesopotâmicos, especialmente o do Épico de Gilgamesh, continua a ser um tema recorrente nas universidades e debates sobre a historicidade da Bíblia. Críticos sugerem que o relato bíblico é uma versão derivada de mitos antigos, especificamente das narrativas mesopotâmicas, como a do herói Utnapishtim no Épico de Gilgamesh. Eles argumentam que a Bíblia teria plagiado esses mitos e, portanto, não pode ser considerada uma fonte confiável para entender os eventos históricos. No entanto, uma análise mais profunda do contexto cultural e dos relatos das diversas tradições revela que a ideia de um grande dilúvio não é exclusiva da Mesopotâmia, mas é um elemento compartilhado por muitas culturas antigas ao redor do mundo.

O Dilúvio nas Culturas Antigas

Histórias de um grande dilúvio catastrófico são encontradas em muitas culturas e tradições ao redor do mundo. Esses relatos, muitas vezes com semelhanças impressionantes ao relato bíblico, sugerem uma memória coletiva de um evento extraordinário, em que uma grande inundação devastou a terra. O historiador Merrill F. Unger, em seu livro Arqueologia do Antigo Testamento, observa que, além dos relatos mesopotâmicos, outras culturas também compartilham narrativas de um dilúvio, cada uma com características próprias, mas com um núcleo comum de sobrevivência e julgamento divino. A seguir, vamos analisar alguns desses relatos:

1. Mesopotâmia: O Épico de Gilgamesh é talvez o relato mais conhecido do dilúvio na cultura mesopotâmica, especialmente na 11ª tabuinha, onde o herói Utnapishtim recebe a ordem dos deuses de construir uma arca para escapar de um dilúvio destinado a destruir a humanidade. Esse relato é notavelmente semelhante ao de Noé, mas com importantes diferenças: na tradição mesopotâmica, os deuses são motivados por questões como a superpopulação e o incômodo com a humanidade, e seu arrependimento pós-dilúvio está relacionado à fome e ao sacrifício. Em contraste, o relato bíblico enfatiza o julgamento divino sobre a perversidade humana e a promessa de Deus de nunca mais destruir a terra com um dilúvio (Gênesis 9:11). A narrativa bíblica, portanto, é mais voltada para questões morais e teológicas, com um Deus soberano e justo que age de acordo com a sua vontade.

2. Sumeriana: O relato do herói Ziusudra na tradição suméria é considerado uma das versões mais antigas da história do dilúvio. Como no *Épico de Gilgamesh*, Ziusudra é avisado pelos deuses para construir uma embarcação, salvando-se do dilúvio que destrói a humanidade. No entanto, a motivação dos deuses para enviar o dilúvio na tradição sumeriana parece estar relacionada ao desejo de livrar-se de uma humanidade barulhenta e perturbadora, o que contrasta com o julgamento divino por causa da maldade humana, como narrado em Gênesis.

3. Acadiana (Atrahasis): O relato acadiano do herói Atrahasis também apresenta uma versão do dilúvio, onde os deuses enviam a catástrofe para controlar a superpopulação de seres humanos. Esse mito tem semelhanças com o *Épico de Gilgamesh*, mas a motivação dos deuses é novamente centrada em um problema existencial com a humanidade e não em uma questão moral. No entanto, a sobrevivência de Atrahasis é similar à de Noé, com o herói sendo instruído a construir uma arca para escapar do dilúvio.

Além dos relatos mesopotâmicos, outras tradições ao redor do mundo apresentam mitos de dilúvio com semelhanças notáveis, como as tradições egípcia, grega, hindu, chinesa, polinésia, mexicana, peruana e até mesmo das tribos indígenas americanas. Cada uma dessas culturas preserva uma memória de um dilúvio catastrófico e uma história de sobrevivência por meio de um herói ou patriarca que escapa da destruição.

O Dilúvio no Contexto Global

A presença de histórias de dilúvio em diferentes culturas, com elementos comuns como a construção de uma arca, a sobrevivência de poucos indivíduos e a promessa de renovação ou recomeço, sugere que o dilúvio bíblico não é um mito isolado ou copiado de outros relatos, mas sim uma narrativa compartilhada por várias culturas antigas. Como destaca Norman Geisler em sua *Enciclopédia de Apologética*, essas histórias podem ser vistas como vestígios de um evento histórico real que foi registrado e transmitido ao longo das gerações, adaptado de acordo com as necessidades culturais de cada povo.

A ideia de um dilúvio global e o salvamento de uma família são temas comuns nas narrativas antigas, e a presença dessas histórias em culturas tão distantes entre si reforça a hipótese de que o dilúvio foi um evento marcante na memória coletiva da humanidade. A Bíblia, ao relatar o dilúvio como um julgamento divino sobre a maldade humana, apresenta uma perspectiva única que se distingue das explicações mitológicas e antropomórficas das culturas mesopotâmicas e outras.

Implicações Apologéticas

A acusação de que o relato bíblico do dilúvio é um plágio dos mitos mesopotâmicos perde força quando se considera o fato de que essas histórias compartilham um núcleo comum, mas também apresentam diferenças significativas. A explicação bíblica do dilúvio é teologicamente mais profunda e moralmente centrada, enfatizando o caráter de Deus e o significado do evento como um juízo sobre a corrupção da humanidade.

Além disso, como argumenta Bruce K. Waltke no *Comentário do Antigo Testamento: Gênesis*, a Bíblia não apenas preserva a memória de um evento histórico, mas também faz uma interpretação teológica desse evento, tornando-o um marco da relação entre Deus e a humanidade. A promessa divina de nunca mais destruir a terra com um dilúvio, simbolizada pelo arco-íris, é um ponto de diferenciação fundamental que estabelece a singularidade do relato bíblico.

Conclusão

A  das diversas tradições de dilúvio em culturas antigas revela que o relato bíblico de Gênesis 6-9 não é um caso isolado, mas parte de um fenômeno global de memória de um grande cataclismo. As semelhanças entre o dilúvio bíblico e os relatos de culturas como a mesopotâmica, a grega, a hindu e a chinesa indicam que esses mitos e lendas têm raízes em uma tradição compartilhada que remonta a um evento histórico real. No entanto, a versão bíblica do dilúvio se destaca por sua interpretação teológica única, que enfoca o julgamento divino e a redenção da humanidade, distanciando-se das explicações mitológicas e oferecendo uma visão moral e espiritual do evento. Portanto, a acusação de que a Bíblia plagiou esses relatos perde credibilidade quando se leva em conta as diferenças significativas entre o relato bíblico e os mitos de dilúvio de outras culturas.

Fontes:

Unger, Merrill F. Arqueologia do Antigo Testamento.

Geisler, Norman. Enciclopédia de Apologética.

Waltke, Bruce K., Fredericks, Cathi J. Comentário do Antigo Testamento: Gênesis.

Halley, Henry H. Manual Bíblico.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

O Épico de Enuma Elish e o Relato Bíblico da Criação: Uma Análise Comparativa - Parte 4 – Evidências Históricas e Textuais: Gênesis Copiou o Enuma Elish?

Por Walson Sales

Após compararmos os relatos da criação em Gênesis e no Épico de Enuma Elish, resta uma questão fundamental: há evidências de que o relato bíblico foi inspirado ou copiado do mito babilônico?

Essa pergunta exige uma análise histórica e textual cuidadosa. Nesta última parte, examinaremos:

A. A cronologia dos textos – Qual foi escrito primeiro?  

B. Evidências de dependência literária – Existem provas concretas de que Gênesis copiou o Enuma Elish?  

C. Perspectivas acadêmicas – Como estudiosos conservadores e críticos avaliam essa relação?  

1. Cronologia dos Textos: Qual foi Escrito Primeiro?

O Épico de Enuma Elish é datado do período *babilônico antigo*, por volta de 1100 a.C., mas algumas versões podem remontar ao século XVIII a.C. Já o relato de Gênesis, segundo a tradição judaico-cristã, foi escrito por Moisés por volta de 1400–1200 a.C.

A grande questão é: isso significa que Moisés copiou os babilônios?

Segundo Merrill F. Unger, em Archaeology and the Old Testament, o argumento da prioridade cronológica do Enuma Elish não é suficiente para provar dependência. Ele observa que a mera precedência temporal de um mito não significa que um texto posterior tenha sido baseado nele. Afinal, a tradição oral hebraica pode remontar a um período muito anterior.

Além disso, Kenneth A. Kitchen, em On the Reliability of the Old Testament, argumenta que a cronologia bíblica é compatível com a tradição mosaica e que não há razões para presumir uma influência babilônica direta.

Portanto, o fato de o Enuma Elish ser mais antigo não prova que Gênesis tenha se baseado nele. A transmissão oral e escrita das tradições hebraicas pode ter preservado um relato da criação independente e muito mais antigo.

2. Evidências de Dependência Literária

Muitos críticos afirmam que as semelhanças entre os dois relatos indicam uma dependência literária. No entanto, ao analisar as evidências, essa hipótese se enfraquece.

Diferenças fundamentais no estilo e na teologia

- John H. Walton, em Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament, enfatiza que a estrutura e a mensagem de Gênesis diferem radicalmente do Enuma Elish. Enquanto o mito babilônico é um poema mitológico cheio de linguagem figurada e conflitos entre deuses, Gênesis apresenta uma narrativa histórica e teológica coesa, centrada em um Deus único e transcendente.

- Gleason L. Archer, em A Survey of Old Testament Introduction, observa que a linguagem de Gênesis é muito mais sofisticada e apresenta uma ordem lógica e moral que falta no Enuma Elish. Isso sugere que Gênesis não é uma adaptação do mito babilônico, mas uma narrativa original e distinta.  

Semelhanças explicadas por uma fonte comum

Em vez de dependência direta, a melhor explicação para as semelhanças entre Gênesis e o Enuma Elish é a existência de uma fonte comum mais antiga.  

Merrill F. Unger (Archaeology and the Old Testament) e Gleason L. Archer (A Survey of Old Testament Introduction) sugerem que ambas as tradições podem ter se baseado em um conhecimento primitivo da criação, preservado oralmente desde os tempos antediluvianos. Essa visão explica por que encontramos temas semelhantes (como o caos inicial e a separação das águas) em várias culturas antigas, sem necessidade de um plágio direto.

Assim, em vez de ver Gênesis como uma cópia do Enuma Elish, podemos considerá-lo o relato mais fiel e teologicamente refinado de um evento real transmitido desde os tempos antigos.

3. O Que Dizem os Acadêmicos?

A relação entre Gênesis e o Enuma Elish tem sido debatida entre acadêmicos liberais e conservadores.

- Acadêmicos críticos como Hermann Gunkel argumentam que Gênesis foi escrito no período do exílio babilônico (século VI a.C.) e, portanto, teria sido influenciado pelas narrativas mitológicas da Mesopotâmia. Essa visão, porém, ignora evidências arqueológicas que indicam que as tradições hebraicas são muito mais antigas.

- Estudiosos conservadores como Kitchen, Unger, Walton e Archer enfatizam que não há provas de uma dependência direta e que as diferenças entre os relatos são muito mais significativas do que as semelhanças.

A posição mais equilibrada é que Gênesis não depende do Enuma Elish, mas reflete uma tradição independente e superior, que preserva uma visão monoteísta pura da criação.

Conclusão Final da Série

Com base na análise textual, histórica e teológica, podemos afirmar que:

I. Gênesis e o Enuma Elish não têm uma relação de dependência direta. As diferenças entre os relatos são muito mais significativas do que as semelhanças.

II. O fato de o Enuma Elish ser mais antigo não significa que Gênesis foi copiado dele. A tradição hebraica pode ter preservado um relato autêntico da criação, anterior ao mito babilônico.

III. Gênesis apresenta uma cosmovisão radicalmente diferente e teologicamente superior. Enquanto o Enuma Elish descreve um mundo nascido do caos e da violência, Gênesis revela um Deus único, soberano e criador de todas as coisas.  

IV. Estudiosos conservadores refutam a tese de dependência literária. Walton, Unger, Archer e Kitchen demonstram que a narrativa bíblica tem características únicas e independentes. 

Dessa forma, a tese de que Gênesis é um plágio do Enuma Elish é insustentável. Pelo contrário, a narrativa bíblica se destaca como uma explicação racional, ordenada e teologicamente coerente sobre a origem do universo e da humanidade.

Obrigado por acompanhar esta série! Caso tenha alguma dúvida ou queira aprofundar algum ponto, estou à disposição.

O Épico de Enuma Elish e o Relato Bíblico da Criação: Uma Análise Comparativa - Parte 3 – Comparação das Narrativas Bíblica e Babilônica

Por Walson Sales

A relação entre o Épico de Enuma Elish e o relato da criação em Gênesis 1-2 tem sido objeto de intenso debate acadêmico. Alguns estudiosos afirmam que a narrativa bíblica teria sido influenciada ou mesmo derivada do mito babilônico. No entanto, uma análise detalhada revela que, apesar de certas semelhanças superficiais, as diferenças são profundas e fundamentais.

Nosso objetivo nesta parte é examinar as semelhanças e diferenças entre os dois relatos e refutar a tese de que Gênesis seja uma mera adaptação do mito babilônico.

1. As Semelhanças Superficiais e seus Reais Significados

Críticos da Bíblia frequentemente apontam semelhanças entre Gênesis e o Enuma Elish para sugerir uma dependência literária ou teológica. Algumas dessas semelhanças incluem:

- Ambos os relatos descrevem uma criação que envolve o céu, a terra e os corpos celestes.

- Ambos mencionam a criação da humanidade.

- Ambos apresentam um período de organização da criação a partir de um estado caótico ou desordenado.

- Ambos contêm uma estrutura que pode ser dividida em sete partes (sete dias em Gênesis e sete tábuas em Enuma Elish).

Contudo, essas semelhanças são apenas estruturais e não provam uma relação de dependência. Muitos povos antigos desenvolveram mitos da criação com elementos comuns, como o uso da água primordial ou a criação do homem a partir de elementos naturais. A questão essencial é: os conteúdos e os significados são semelhantes?  

2. Diferenças Fundamentais entre Gênesis e o Enuma Elish

a) Origem do Universo

- No Enuma Elish, o mundo surge do conflito entre divindades. O caos é representado pela deusa Tiamate, que precisa ser derrotada pelo deus Marduque. O cosmo nasce da violência e do derramamento de sangue divino.

- Em Gênesis, a criação acontece pela palavra soberana de um único Deus (Gn 1:1-3). Deus não luta contra forças do caos nem depende de elementos preexistentes. Ele cria tudo ex nihilo (do nada).

A visão bíblica é teologicamente superior, pois apresenta um Deus transcendente e soberano, enquanto o Enuma Elish reflete uma cosmovisão politeísta, com deuses limitados pelo caos. 

b) A Natureza da Divindade

- No Enuma Elish, os deuses são seres finitos, sujeitos à paixão, engano e conflitos. Marduque torna-se o principal deus porque é mais forte, não porque seja essencialmente divino.

- Em Gênesis, Deus é eterno, onipotente e santo. Ele não precisa lutar contra outros seres para afirmar Seu domínio. Sua soberania é absoluta desde o princípio.

Enquanto o Enuma Elish reflete um panteão instável, Gênesis apresenta um monoteísmo ético, onde Deus é o criador e mantenedor de tudo.

c) O Propósito da Criação

- No Enuma Elish, o homem é criado para servir aos deuses, assumindo trabalhos pesados para que os deuses possam descansar. A humanidade é um subproduto da guerra cósmica.

- Em Gênesis, o homem é criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1:26-27), com valor intrínseco e um propósito nobre: governar a criação e ter comunhão com Deus. 

A diferença é gritante: no relato bíblico, a humanidade tem dignidade, enquanto no Enuma Elish, os homens são meros servos.  

d) O Meio da Criação

- No Enuma Elish, Marduque cria o mundo a partir do cadáver de Tiamate, dividindo seu corpo para formar o céu e a terra. A criação surge do sangue e da violência.  

- Em *lGênesis, Deus cria por meio de Sua palavra (“E disse Deus: haja luz”, Gn 1:3). Não há luta, sangue ou guerra.

A narrativa bíblica reflete uma ordem racional e intencional na criação, enquanto o Enuma Elish apresenta um processo caótico.

e) A Organização do Tempo 


- No Enuma Elish, os astros são criados para regular os festivais dos deuses. O tempo está subordinado ao culto politeísta.  

- Em Gênesis, os astros são criados para benefício da humanidade, marcando dias e estações (Gn 1:14-18).

Essa diferença reflete a visão bíblica de um Deus que organiza o mundo para o bem do homem, e não para alimentar caprichos divinos.

3. Explicações para as Semelhanças 


As semelhanças entre os dois relatos não indicam que Gênesis copiou o Enuma Elish. Há três possíveis explicações para essas semelhanças:

I. Fonte comum 

Ambas as narrativas podem remontar a um conhecimento original da criação, preservado e depois distorcido em mitos politeístas.

II. Influência cultural 

Os israelitas, vivendo no Antigo Oriente Próximo, poderiam estar familiarizados com os mitos babilônicos, mas isso não implica dependência.

III. Coincidências linguísticas 

Algumas palavras semelhantes, como Tehom (hebraico) e Tiamate (babilônico), não indicam derivação direta, mas raízes semíticas comuns.

Conclusão

A análise das semelhanças e diferenças entre Gênesis e o Épico de Enuma Elish mostra que a tese de que a Bíblia é um plágio do mito babilônico não se sustenta. As semelhanças são superficiais e comuns a muitos mitos antigos, enquanto as diferenças são profundas e revelam uma visão de mundo totalmente distinta.

Gênesis apresenta um Deus único, eterno, soberano e moralmente perfeito, enquanto o Enuma Elish descreve deuses limitados, sujeitos a paixões e violência. A criação em Gênesis ocorre por um ato de vontade e ordem divina, enquanto no Enuma Elish surge do conflito e do caos.

Dessa forma, a narrativa bíblica não pode ser reduzida a um mito derivado da cultura babilônica. Pelo contrário, ela se destaca como uma revelação superior e coerente sobre a origem do universo e da humanidade.