quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

O Deus do Antigo Testamento versus o Deus do Novo?


Paul Copan
Matthew Flannagan
O nome “Marcião” não é muito bem amado pelos Cristãos ortodoxos. Enquanto Cristãos primitivos tal como Orígenes (185-253/4) alegorizada as passagens perturbadoras do Antigo Testamento, Marcião (nascido em cerca de 100 d.C.) entendia tais passagens ao pé da letra. E rejeitava essas passagens também como o Deus criador “inferior” dos Judeus – o Deus de ira e justiça – representado nessas passagens. A luz de sua crença de que Jesus revelou o Deus bom e supremo, Marcião formou seu próprio Cânon anti Judaico de um Lucas revisado (o Evangelho) e dez das cartas de Paulo (o Apóstolo). Segundo Marcião, o Deus do Antigo Testamento é muito diferente do Deus do Novo Testamento.
Esta é uma crítica comum hoje também. A matança dos Cananeus, as pragas e outros julgamentos divinos, Salmos imprecatórios (orações de maldição) e leis severas do Antigo Testamento parecem ser de um espírito diferente do “Jesus não violente e amoroso” do Novo Testamento. Para muitos, as opções estão entre escolher o Deus vingativo e violento do Antigo Testamento ou o Deus amoroso e Pai de Jesus Cristo no Novo Testamento. Então, se estas são as únicas opções, quem vai querer ficar do lado do Deus do Antigo Testamento? O Deus do Antigo Testamento é, de alguma forma, diferente do Deus do Novo? Jesus tenta se distanciar – junto com os escritores do Novo Testamento – do Deus retratado no Antigo Testamento?
Certos eruditos Cristãos hoje parecem fazer esta forte distinção. Por exemplo, o erudito Francês René Girard assevera: “No Antigo Testamento nós nunca chegamos numa concepção de deidade que é inteiramente estranha à violência...apenas os textos dos Evangelhos conseguem alcançar o que o Antigo Testamento deixa incompleto”.[1] Culturas humanas caídas podem podem glorificar a guerra e dar a ela um selo divino – mesmo no Antigo Testamento – mas o Novo Testamento deixa claro que o Deus verdadeiro é removido de toda violência.
O falecido erudito bíblico Peter Craigie (um Menonita) considerava a guerra “uma forma de atividade humana maligna” – embora Deus ter participado em guerras com o Antigo Israel como “o Guerreiro” tanto para julgar e redimir.[2] Independentemente [para ele], a guerra é “nunca menos do que um mal absoluto e suas menções frequentes no Antigo Testamento não o eleva em caráter. É ... uma forma de atividade humana maligna, pela qual Deus, em sua Soberania, possa trabalhar seus propósitos de julgamento e redenção.”[3]
Os Cristãos que adotam esta linha de raciocínio assumem que existe uma grande lacuna entre a cosmovisão dos antigos israelitas e os ensinos de Jesus (e nossa própria forma moderna de pensar). Por exemplo, o comentário bíblico sobre Deuteronômio de Thomas Mann afirma que Israel sustentou uma cosmovisão primitiva em que eles acreditavam que Deus era o responsável por enviar a chuva como benção ou a retenção da chuva como punição pela desobediência de Israel (Dt 11: 10-17; 28: 12, 23-24); tais maldições divinas também incluíam doenças humanas, pragas nas colheitas, ou infestações de insetos (Amós 7: 1-3). Nós, modernos iluminados, reconhecemos não é responsável pelos padrões do tempo ou quaisquer doenças físicas que recaiam sobre os seres humanos.[4]

Sombras de Marcião?
Alguns Cristãos especialistas sobre o Antigo Testamento são chamados de Marcionitas por outros dentro da comunidade Cristã – mais notavelmente Peter Enns e Eric Seibert. Esta é uma acusação justa? Ambos a repudiam. Por exemplo, Peter Enns escreveu um artigo em seu Blog sobre esta acusação, cujo título é “Peter Enns é um Marcionita?”, e escreveu:

O Novo Testamento deixa para trás a retórica violenta, tribal, da supremacia dos Israelitas sobre outros povos, de uma porção significativa do Antigo Testamento. Antes, o caráter do povo de Deus – feito agora de Judeus e Gentios – é dominado por tais comportamentos como fé em Cristo labutando em amor, auto sacrifício, orações pelos inimigos e perseguidores. Você sabe, Jesus 101.[5]

Ele adiciona depois: “Eu não acho que o Evangelho permite, tolera ou apoia a retórica tribal do Antigo Testamento. Mas isso não significa que eu creio que o Antigo e o Novo Testamentos nos dá deuses diferentes. Antes, eles nos dão diferentes representações de Deus”. Sendo assim, Enns afirma que a acusação de que ele é um Marcionita é equivalente a dizer que ele nasceu em Marte.
Eric Seibert, que ensina Antigo Testamento no Messiah College, escreveu The Violence of Scripture: Overcoming the Old Testament’s Troubling Legacy (2012), o qual constrói um argumento sobre sua obra escrita anteriormente, Disturbing Divine Behavior (2009).[6] Ele resume sua pesquisa às Escrituras sobre o Blog de Peter Enns na postagem “When the Good Book Is Bad”:

Para colocar sem rodeios: nem tudo no “bom livro” é bom ou bom pra nós. Sei que isso pode soar blasfemo para algumas pessoas e flutua sobre tudo o que eles foram ensinados a crer sobre a Bíblia. Quando a Igreja proclama grandiosamente que a Bíblia é a Palavra de Deus, isso dá a impressão que as palavras da Escritura estão acima de crítica e reprovação. Somos ensinados e ler, reverenciar, e abraçar a Bíblia. Não somos ensinados a desafiar seus valores, ética ou suas representações de Deus.[7]

Novamente, ambos os escritores repudiam o Marcionismo. Eles rejeitam a noção de que existem dois Deuses distintos em vista; eles afirmam que os testamentos representam Deus diferente um do outro. Eles não abandonam todo o Antigo Testamento como Escritura, mas eles nos conclamam a lermos estes textos violentos de forma cuidadosa e crítica. Eles apreciam o texto do Antigo Testamento e procuram entender suas tensões e os textos “subversivos” que minam ou desafiam o que parece ser violência aprovada divinamente. Diferente de Marcião, eles não rejeitam as coisas Judaicas como as leis dietéticas ou as cerimônias do templo. Dito isto, algumas das coisas que lemos deles não se enquadram com pronunciamentos e enfases da própria Escritura. Então talvez possamos explorar algumas dessas preocupações neste capítulo.
Como Enns, que afirma que os dois testamentos nos dá “diferentes representações de Deus”, Seibert rejeita a ideia de que o Deus verdadeiro esteja por trás dos comandos de violência. Além disso, o Deus verdadeiro não está por trás do ato de trazer julgamentos temporais sobre os seres humanos. Não, este não é o verdadeiro Deus (o “Deus real”), mas antes uma representação literária (o “Deus textual”).[8] E embora estes textos violentos sejam tecnicamente a “Palavra de Deus”, eles não tem nenhuma relação com o Caráter de Deus, que é pacífico e amoroso. Apesar dos leitores da Bíblia tomarem esses textos severos como uma revelação clara da representação de Deus como o “Deus real”, estes textos tem enganado repetidamente os seguidores de Jesus a cometerem todos os tipos de atos horrendos em seu nome.
Seibert e Enns afirmam que suas estruturas interpretativas de referência é Jesus de Nazaré – e como um crente que raciocina corretamente poderia discordar? Enquanto apelar para Jesus é digno de louvor, somos apresentados a uma representação limitada de Jesus – e daqueles que ignoram as afirmações autoritativas dos escritores pregadores do Novo Testamento sobre Yahweh e suas ações no Antigo Testamento. Seibert nota que a “violência virtuosa” nos textos do Antigo Testamento tem sido utilizados para justificar o colonialismo, violência étnica, e o abuso das mulheres: “O próprio Antigo Testamento é parte do problema”.[9] Isto é devido largamente ao fato de que os textos do Antigo Testamento absorvem muitos dos valores e crenças dos próprios escritores bíblicos do Antigo Oriente Próximo. Isto inclui etnocentrismo e patriarcado – isto para não mencionar os julgamentos temporais ameaçados pelos profetas ou alegadamente os atos de destruição divina tais como o Dilúvio do período de Noé e a chuva de enxofre sobre Sodoma. Estes atos não refletem o caráter de um Deus compassivo e misericordioso, [afirmam eles].[10]
O que é violência? Seibert a define como “Dano físico, emocional ou psicológico, feito a uma pessoa por um indivíduo (ou indivíduos), instituição ou estrutura, que resulte em injúria, opressão ou morte”.[11] E mais, violência não tem nenhuma relação com o caráter de Deus. A solução de Seibert, como notamos acima, é distinguir entre o Deus textual (a representação literária dos autores do AT) e o Deus real (a realidade vívida) – especialmente no Antigo Testamento, onde a lacuna entre eles é frequentemente muito ampla. Na estimativa de Seibert, o Antigo Testamento faz suposições sobre Deus que “o povo de fé hoje não deveria mais aceitar”.[12] Por exemplo, Deus não faz com que nações vençam (ou percam) batalhas; antes, isto depende do tamanho das tropas, da sofisticação das armas e assim por diante. Para sermos guiados na interpretação dos textos do Antigo Testamento, devemos olhar para o Jesus não violento e que ama os inimigos, cujo exemplo e ensino refletem perfeitamente o Caráter de Deus. Devemos pensar sobre os julgamentos de Deus como escatológicos (no fim de todas as coisas) e não temporais (dentro da história como a conhecemos). E este julgamento do fim dos tempos (talvez uma “destruição final e irreversível”) não precisa ser construída como inerentemente violenta, [afirma Seibert].[13]
Assim, Seibert nos conclama a lermos a Bíblia de forma cuidadosa, inversa e crítica – e não complacente.[14] Ele nos dá um guia específico para a leitura não violenta do Antigo Testamento: ler ativamente (não passivamente); questionar (não apenas ouvir) os textos; criticar eticamente (não aprovar sem críticas) os textos violentos; nos engajamos em uma crítica ética seguindo cuidadosamente a crítica do amor (lendo sob o amor de Deus pelos outros); se comprometendo com a justiça (tornando as coisas certas); e tendo uma ética consistente pela vida (valorizando todas as pessoas). Ao criticar, devemos considerar todas as “vozes” do Antigo Testamento, algumas das quais desafiam a “violência virtuosa”. Por exemplo, considere como a Cananeia Raabe se parece mais com uma Israelita do que o Israelita Acã, que se parece mais com um Cananeu. Reconhecer isso nos impedirá de opor “Maus” Cananeus contra “Bons” Israelitas. Outra estratégia [segundo Seibert] é ler o AT com as vítimas e suas famílias (Golias não tinha uma família por quem ele se preocupava?). E devemos ler as Escrituras pelas margens dos pontos de vistas dos de fora (“Como os Cananeus teriam visto a entrada de Israel em suas  terras?”). Em tudo isso, [continua Seibert] devemos transcender a violência do AT ao olharmos para o caráter de Deus em Cristo.
A medida que Seibert desenvolve sua tese no seu livro Violence of Scripture, ele aplica essas diretrizes e oferece estratégias específicas para lidar com textos violentos, particularmente quando se referem as guerras e ao tratamento dado as mulheres. Por exemplo, não devemos nomear a violência – chamando a matança dos Cananeus de “Genocídio”. Devemos também reconhecer o viés das histórias de guerra de Israel contadas apenas pela versão dos Israelitas e desenvolver compaixão pelos inimigos de Israel.[15] A guerra machuca a todos: deixa em seu rastro viúvas e órfãos e encoraja a vingança [finaliza Seibert].[16]

O Deus de Jesus É o Deus de Moisés
O Deus representado no Antigo Testamento e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo é "severo", "duro" e "violento"? Eruditos como Seibert, Enns, Girard e outros representam com precisão a representação do Deus de Moisés e Josué no Antigo Testamento? Será que talvez eles não minimizam a representação de Deus do Novo Testamento que resume o Antigo Testamento? Seguem algumas respostas em ordem.
Primeiro, é verdade que devemos pensar com mais profundidade sobre as dificuldades bíblicas e problemas éticos de passagens do AT ao invés de encobrí-los ou reinterpretá-los. Eruditos como Christopher Wright, Gordon Wenham, David Lamb, e John Goldingay tem feito um trabalho admirável de lidar honestamente com estes textos. E todos nós, autores no tema, temos trabalhado estes tópicos como parte de um projeto contínuo. Enquanto podemos discordar com as conclusões e metodologias de certos estudiosos, nós apreciamos verdadeiramente seus desejos de abordarem estes textos que deixam muitos perplexos e com problemas. E devemos mesmo ficar angustiados com o abuso que Cristãos professos fazem na interpretação da Escritura, que usam tais textos para justificar a subjugação das mulheres, os horrores do tráfico de escravos, e a opressão à grupos de pessoas. Ainda, apesar da distorção "Cristã" das Escrituras através dos séculos, não podemos esquecer dos ganhos morais trazidos pelos, sim, Cristãos leitores da Bíblia, na civilização Ocidental e (especialmente) missionários protestantes que trouxeram muitos benefícios democráticos, reformas morais, e proteção aos povos indígenas dos poderes coloniais. Outros ganhos incluem a democracia, literatura, direitos humanos, direitos das mulheres, direitos civis, abolição da escravatura e assim por diante.[17]
Segundo, o comentário negativo de Seibert de que a Igreja "proclama grandiosamente" que a Bíblia é a Palavra de Deus é, antes de mais nada, injusta. Afinal, o próprio Jesus "proclama grandiosamente" isso também - até mesmo com respeito a "um jota ou um til" (Mt 5:18; cf. Jo 10:35). Da mesma forma, Paulo insiste que toda a Escritura é inspirada por Deus e proveitosa (2 Tm 3:16). Ironicamente, ao mesmo tempo em que Seibert afirma que Jesus é a chave hermenêutica para sua ética, ele, na verdade, não adota a própria atitude de Jesus com respeito à Escritura. Este ponto se torna completamente aparente no apêndice de seu livro Disturbing Divine Behavior, onde ele vê a inspiração divina do Antigo Testamento como "geral", ao invés de ver como "completa" - certamente sem nenhuma variação de "nem um jota ou um til".
Terceiro, devemos ser cuidadosos para não apelarmos à autoridade de Jesus de forma seletiva. No padrão profético do AT, Jesus se engaja regularmente em denúncias e ameaças de julgamentos - tanto de forma temporal, quanto final [escatológica]. Ele pronuncia julgamento temporal sobre Jerusalém com certa rotina; este julgamento viria por Roma no ano 70 d.C. Ele também assume que Sodoma, Tiro e Sidom foram divinamente julgadas com violência, que serve como um link para condenar a descrença de seus contemporâneos em Betsaida, Corazim e Cafarnaum (Mt 11:21-24; cf. 10:15). Perceba que estas advertências de julgamento precedem a própria auto descrição de Jesus como manso e humilde de coração (Mt 11:28-30)! Da mesma forma, Jesus tomou como certo o julgamento divino de forma violenta nos dias de Noé (Mt 24: 37-39). E em um ato simbólico, um Jesus enfurecido, fez um chicote para expulsar os cambistas do templo que impediam as pessoas de até mesmo entrarem no templo (Jo 2:15; cf. Mc 11: 15-17). Será que não houve um toque de nenhum tipo de "violência" que Seibert e Enns considerariam como não Cristã? E sobre a condenação que Jesus faz dos que seriam as pedras de tropeço, que segundo ele, deveriam ter uma pedra de moinho amarrada ao pescoço e jogados no mar (Mt 18:6)? Ele ameaça os malignos guardadores da vinha (líderes de Israel) com julgamento temporal (Mt 21:41; Mc 12:9). Jesus declara, da mesma forma, que "lutará" contra os Nicolaítas "com a espada da minha boca", e que jogará a falsa profetiza "Jezabel" de cama doente e que trará "morte" sobre seus seguidores (Ap 2: 16, 20-23). Jesus crê claramente na adequação da punição temporal divina e a pena de morte da lei Mosaica (Mt 15:4).
Além disso, Jesus toma como certo o panorama teológico geral do Antigo Testamento. Por exemplo, assim como o “Deus do Antigo Testamento” era soberano sobre o tempo, o próprio Jesus (e contra Mann) afirmou que seu Pai celestial “faz com que o sol se levante” e “desça a chuva” sobre maus e bons, justos e injustos (Mt 5:45). Ele também relembra a Pilatos que nenhuma autoridade Roma teria se não fosse dada do céu por Deus e assim, isso não é questão de ter um exército maior e melhor estratégias militares (Jo 19: 10-11). Enquanto vemos Jesus reconhecendo que a dureza do coração humano significa que certas condições que ainda não são ideais foram permitidas por Deus (e.g., Mt 19:8), ele se viu alinhado aos profetas aos profetas, cuja perspectiva teológica ele compartilhava, incluindo a crença em um Deus santo que trás julgamentos temporais sobre sobre as nações – incluindo Israel por Roma em 70 AD – e que envia os malfeitores ao “Gehenna”.
Quarto, não devemos colocar os ensinos de Jesus (ou um certo entendimento desse ensino) contra as afirmações encontradas em todos os lugares no Novo Testamento, apelando para um Jesus “não violento”, mas ignorando não apenas suas premissas sobre julgamentos violentos, mas também outras vozes fortes e autoritativas no Novo Testamento. Paulo faz referência a punições temporais severas sobre Israel como um exemplo para nós – alguns Israelitas ficaram prostrados; outros foram destruídos por serpentes, outros pelo “destruidor” (I Co 10). Ele faz referência ao julgamento dos ímpios e até mesmo a morte por causa do abuso à Santa Ceia (I Co 11:30). Estevão menciona como um fato consumado que nações foram expulsas por Josué (Atos 7:45: “as nações que Deus lançou para fora da presença de nossos pais”). Da mesma forma, Paulo afirma que “Ele [Deus] destruiu sete nações na terra de Canaã” (Atos 13:19). O autor de Hebreus fala daqueles que “conquistaram reinos”, “se tornaram poderosos na guerra”, e “colocaram em fuga exércitos de inimigos” (11: 33-34). Ele também enaltece a fé de de Noé e Abraão (11: 7, 17) – que inclui atividade violenta. E sobre os julgamentos temporais e finais [escatológicos] sobre os descrentes, mencionados em todo o livro de Apocalipse? O Jesus “não violento” é retratado montado num “cavalo branco”, “e o que estava assentado sobre ele chama-se Fiel e Verdadeiro; e julga e peleja [luta na guerra] com justiça.” (
Apocalipse 19:11). Ele “estava vestido de veste tingida em sangue”, para que pudesse julgar as nações, “E da sua boca saía uma aguda espada, para ferir com ela as nações; e ele as regerá com vara de ferro; e ele mesmo é o que pisa o lagar do vinho do furor e da ira do Deus Todo-Poderoso.” (v. 13, 15). Essa linguagem soa muito parecida com o Deus do Antigo Testamento (Is 63:2-6). Apesar do livro de Apocalipse ser altamente simbólico, vemos o próprio Jesus se engajando em atos do julgamento final aparentemente violentos lá; devemos ser cuidadosos ao tratarmos tais textos como totalmente simbólicos. Pois Jesus promete a a falsa profetiza Jezabel “Eis que a porei numa cama, e sobre os que adulteram com ela virá grande tribulação, se não se arrependerem das suas obras. E ferirei de morte a seus filhos, e todas as igrejas saberão que eu sou aquele que sonda os rins [as mentes] e os corações. E darei a cada um de vós segundo as vossas obras.” (
Apocalipse 2:22,23) – um ato de julgamento temporal. E o próprio Jesus (Mt 24: 37-51), como também Pedro (II Pe 3: 1-13), comparam o julgamento violento do fim dos tempos com o julgamento violento e temporal do Dilúvio dos dias de Noé. E Jesus usa linguagem violenta para retratar a severidade do julgamento do Juízo Final em uma parábola de um mestre que voltará ao seu servo mau e negligente e o condenará com os ímpios onde “haverá pranto e ranger de dentes” (Mt 24: 51; Lc 12: 46; cf. Mc 12: 9; Lc 20: 16). Enns considera a ordem para “destruir totalmente” os Cananeus como sendo estranho à “Teologia Cristã”, bem como aos “ensinos de Jesus sobre como tratar os pecadores e inimigos, os quais não se encaixam bem com as ordens de Deus para matar homens, mulheres e crianças”.[18]
Enns considera a ordem com respeito aos Cananeus como sendo literal ao invés de hipérbole (como veremos depois), mas mesmo provando ser hipérbole, seria irrelevante para Enns e Seibert.
O problema para ambos, Enns e Seibert, é que Jesus e os escritores do Novo Testamento não leem o Antigo Testamento de “uma forma não violenta” como eles sugerem. Ao contrário, vemos pronunciamentos muito claros (ou descrições) dos julgamentos e da ira divina feitas por Jesus e pelos autores do Novo Testamento e nenhum deles amenizam as descrições de Deus no Antigo Testamento. Além disso, para minimizar ou mesmo negar a historicidade de inúmeros eventos do Antigo Testamento e afirmações claras feitas por Jesus por causa de suas conexões com a ira divina é distorcer a representação clara de Jesus, que afirma tais textos (o Dilúvio dos dias de Noé, a punição capital da lei Mosaica, a destruição de Sodoma, Gomorra, Tiro e Sidom). Explicar algumas claras conexões entre Deus e ações violentas no Antigo e no Novo Testamentos, questionando a historicidade desses textos é problemático; uma vez que dizemos que apenas em “alguns casos” são eventos históricos essenciais a nossa fé, isso vai contra as suposições bíblicas gerais de historicidade, por assim dizer, dos julgamentos temporais divinos e as suposições claras dos autores do Novo Testamento e do próprio Jesus de que estes eventos foram históricos.[19]
Impor uma grade não violenta ou pacifista sobre as palavras e ações de Deus/Jesus exige uma ginástica hermenêutica significativa – uma abordagem que cria uma camisa de força interpretativa. Proclamar um pacifismo absoluto e a rejeição de qualquer associação entre Deus e ações violentas requer dispensar ou ignorar as próprias afirmações autoritativas de Jesus, vastos tratados da Escritura que pertencem à ordem dos julgamentos divinos – tais como os livros proféticos – e o livro de Apocalipse, que cita constantemente esses livros proféticos. Ao fazer isso também se ignora seções da Escritura onde a força – até mesmo a força letal – é justificada. Entre elas, estão inclusas as ordens de Deus para que o ministro do estado porte “a espada” (Rm 13: 4), ou Paulo se beneficiando da força militar quando sua vida estava sob ameaça (Atos 23). E sobre Pedro, por meio de quem o Espírito Santo de Deus feriu Ananias e Safira, porque eles haviam mentido para Deus (Atos 5)? E sobre Paulo, por quem Deus cegou Elymas (Atos 13)? E quando os 11 buscaram substituir Judas Iscariotes, eles estavam ignorando as palavras de Jesus sobre amar os inimigos quando citaram dois Salmos imprecatórios para apoiar suas ações? Os textos que lhe deram suporte foram esses: “Porque no livro dos Salmos está escrito: Fique deserta a sua habitação, E não haja quem nela habite, e: Tome outro o seu bispado.” (
Atos 1:20; cf. Sl 69: 25; 109: 8). Não somente Paulo utilizou tal linguagem imprecatória quando ele chamou Elymas de “Filho do Diabo” (Atos 13: 10), como também o próprio Jesus declarou que o “Pai” de seus oponentes era “o Diabo” (Jo 8: 44). Estes textos devem ser inclusos nos “textos vilentos” da Escritura?
Paulo expressou uma oração de justiça com respeito a Alexandre, o Latoeiro, que muito o prejudicou: “Alexandre, o latoeiro, causou-me muitos males; o Senhor lhe pague segundo as suas obras.” (
2 Timóteo 4:14). Paulo disse que aqueles que se recusam a “amar ao Senhor” seja “anátema” (I Co 16: 22) – bem como aqueles que ensinam um falso evangelho (Gl 1: 8-9). Ele mesmo desejou que aqueles judaizantes que estavam criando problemas fossem cortados [literalmente castrados ou mutilados] (Gl 5: 12). Ele os chamou de “cães” (Fl 3: 2) – que estão fora da aliança. O próprio Jesus usa linguagem similar sobre aqueles que desprezam as coisas sagradas de Deus, os chamando de “cães” e “porcos” (Mt 7: 6) – no próprio sermão da montando onde Jesus diz para amar os inimigos! Depois em Mateus, Jesus fala palavras duras para aqueles que se opõem a ele e atribui suas palavras a Satanás (Mt 23) – apesar dele orar por perdão pra eles na cruz (Lc 23: 32).
Quando os inimigos de Deus são punidos justamente, os escritores do Novo Testamento ecoam a alegria dos seus pares do Antigo Testamento: “Celebre o que se deu com ela, ó céus! Celebrem, ó santos, apóstolos e profetas! Deus a julgou, retribuindo-lhe o que ela fez a vocês ’ ". (Apocalipse 18:20, NVI; cf. Sl 96: 10-13; 97: 7-9; 98: 7-9; 99: 4-5). Estas expressões de satisfação – até mesmo de alegria – sobre a ira e o julgamento divino são justificados: “são merecedores” (Ap 16: 6).[20] Isto não se opoem ao chamado de Jesus para amar e orar pelos nossos inimigos – de fato, deseja a salvação deles. Ainda, John Stott coloca nesse contexto: “Nós não podemos desejar a salvação deles em desafio à própria falta de vontade deles para receber a salvação”.[21] Stott continua: “devemos desejar sinceramente a salvação dos pecadores se eles se arrependerem e igualmente, sinceramente desejarem também, (e nossa) destruição se eles (ou nós) não quisermos”.[22] Vemos aqui novamente uma forte continuação entre os dois Testamentos.
Considera, pois, a bondade e a severidade de Deus” (
Romanos 11:22). Sim, devemos ler as Escrituras com discernimento, mas devemos tomr cuidado para evitar uma seletividade indiscernível que ignora a própria postura do Novo Testamento e do próprio Jesus. Vemos na Escritura com bastante clareza a bondade de Deus, mas não devemos negar sua severidade; essencialmente rejeitar como deturpação muitos textos de julgamentos violentos atribuídos a Deus / Jesus é deixar um enorme buraco explicativo. Mesmo o principal texto do Antigo Testamento que descreve o Deus de Israel como “O Senhor, o Senhor Deus, misericordioso e piedoso, tardio em irar-se e grande em beneficência e verdade;” (
Êxodo 34:6) é seguido imediatamento por “que ao culpado não tem por inocente” (
Êxodo 34:7; cf. Ex 20: 6). O profeta Habacuque suplica a Deus sobre o juízo pendente sobre Judá: “na tua ira lembra-te da misericórdia.” (
Habacuque 3:2). A mensagem de Jesus enfatiza claramente a misericórdia divina, mas também reconhece a ira divina.
John Goldingay oferece sua avaliação:

Muitos no mundo moderno não gostam da forma que o livro [de Josué] retrata Josué conduzindo Israel na matança de muitos Cananeus, mas não existe nenhuma indicação de que o Novo Testamento compartilhe dessa inquietação moderna. O Novo Testamento retrara Josué como um grande herói (veja Hebreus 11) e retrata a desapropriação violenta que Deus fez dos Cananeus como parte da obtenção do propósito de Deus na salvação (veja Atos 7). Se existe uma contradição entre amar seus inimigos e ser pacificador por um lado, e o empreendimento de Josué desta tarefa sob as ordens de Deus, por outro lado, o Novo Testamento não vê isso.[23].

Sim, exstem diferenças entre o tratamento que Deus dá ao seu povo sob o antigo e o novo pacto – por exemplo, a punição capital foi ordenada ou permitida para certos tipos de ações no Israel antigo, como oposto a excomunhão da pessoa imoral da Igreja do Novo Testamento (I Co 5). Deus também permite condição moral inferior no Antigo Testamento que o Novo Testamento observa (e.g. Mt 19: 8). No entanto, Jesus e seus primeiros seguidores tomaram como certo o mesmo caráter imutável de Deus das Escrituras Hebraicas. Assumir que Jesus rejeitou os julgamentos temporais divinos nas Escrituras do Antigo Testamento é ir contra a própria aceitação de Jesus da historicidade desses eventos, seus próprios pronunciamentos furiosos, e sua forte identificação com a cosmovisão do Antigo Testamento. Então, devemos estudar e qualificar cuidadosamente a natureza da violência na Escritura, mas não devemos fazer violência à Escritura nesse processo.

Resumo:
        O antigo escritor Marcião repudiou o Antigo Testamento como oriundo de um Deus Criador “inferior” dos Judeus.
        Nós não devemos criar um hiato entre o Deus do Antigo Testamento que duro, que se ira e que ordenou a guerra do Deus apresentado por Jesus que é amoroso, compassivo e não violento.
        Aqueles que distinguem nitidamente aqui tendem a argumentar que Deus não envia julgamentos como a fome ou como a falha na colheita sobre as pessoas (isto reflete apenas a cosmovisão dos autores bíblicos do Antigo Oriente Próximo), nem ele comandaria a guerra ou traria julgamentos violentos.
        Devemos evitar uma forte distinção entre “o Deus textual” (a representação literária dos autores) e “o Deus real” (a realidade divina viva) em nome de uma suposição falha e restritiva de que o verdadeiro Deus nunca tenha utilizado violência em julgamentos. Esta teoria não nasceu pela leitura das palavras do próprio Jesus ou do resto das testemunhas do Novo Testamento.
        Tais pensadores tomam o Jesus não violento e que ama os seus inimigos como ponto de referência para nos apresentar o caráter de Deus. Eles nos advertem a lermos o Antigo Testamento de forma não violenta e do ponto de vista dos de fora (e.g., Por acaso Golias não tinha uma família que ele amava e que era responsável?). nós também [não] devemos dar nome à violência – por exemplo, chamar a matança dos Cananeus de “genocídio”.
        Verdade, devemos pensar com maior profundidade sobre as dificuldades e problemas éticos das passagens do AT ao invés de ignorá-los e reinterpretá-los. Devemos denunciar o mau uso dos textos bíblicos.
        Apesar do mau uso dos textos bíblicos através dos séculos, lembremo-nos dos grandes ganhos morais trazidos pelos Cristãos, leitores da Bíblia, na civilização Ocidental. Estes ganhos incluem a democracia, literatura, direitos humanos, direitos das mulheres, direitos civis, abolição da escravatura e muito mais.
        Sim, a Igreja “proclama grandemente” que a Bíblia é a Palavra de Deus, mas Jesus faz o mesmo ao dizer que não passará “nem um jota ou um til” da Escritura (Mt 5: 18; cf. Jo 10: 35; bem como Paulo em 2 Tm 3: 16). Está claro que simplesmente por fazer este pronunciamento não torna alguém automaticamente suscetível a deturpar a Escritura!
        Devemos evitar um apelo seletivo à autoridade de Jesus. Afinal, Jesus denuncia Jerusalém, Betsaida, Corazim e Cafarnaum e reconhece a pena capital Mosaica (Mt 15: 4), e ele assume que Sodoma, Tiro, e Sidom foram divinamente julgadas na história (Mt 11: 21-24; cf. 10: 15).
        Jesus faz um chicote para expulsar os cambistas do Templo (Jo 2: 15; cf. Mc 11: 15-17). Ele fala em termos violentos sobre aqueles que são pedras de tropeço (Mt 18: 6), bem como dos “malignos” cuidadores da vinha – a liderança de Israel (Mt 21: 41; Mc 12: 9). Em Apocalipse, Jesus faz ameaças de julgamento temporal severo sobre “Jezabel” e seus seguidores (Ap 2: 16, 21-23 – jogá-la de cama, grande tribulação, e a “morte de seus filhos com pestilência”). Ele fala em uma parábola em um servo mau e negligente que quando o mestre retornasse (representando Deus), iria jogá-lo onde há “pranto, choro e ranger de dentes” (Mt 24: 51; Lc 12: 46).
        Jesus também abraçou o panorama teológico geral do Antigo Testamento – de que o Pai Celestial “faz o sol nascer” e “envia a chuva” sobre os bons e os maus, justos e injustos (Mt 5: 45). Ele também afirma que a força militar e a estratégia não garantem a vitória, desde que a autoridade é dada por Deus (Jo 19: 10-11).
        Não devemos negligenciar a mensagem do restante do Novo Testamento – incluindo Paulo e outros que afirmam julgamentos temporais severos sobre Israel (I Co 10) e até mesmo julgamentos divinos em seus dias (I Co 11:30). Eles confirmaram as guerras contra os Cananeus e outras batalhas (At 7: 45; 13: 19; Hb 11: 33, 34), e Noé (que foi livrado no julgamento) e Abraão (que ofereceu Isaac) são reverenciados pela que que professaram (Hb 11: 7, 17).
        Parece que Jesus e os escritores do Novo Testamento não leram, na verdade, o Antigo Testamento da maneira que Seibert e Enns acham que eles deveriam ler.
        A grade de pacifismo/não violência parece ir de encontro a outras afirmações no Novo Testamento (Rm 13: 4; At 23: 12-35, onde Paulo apela pela proteção militar para não ser morto). Além disso, o próprio Jesus usa uma linguagem forte contra seus inimigos (Mt 7: 6; Jo 8: 44), da mesma forma os Apóstolos (At 13: 10; Gl 1: 8-9; 5: 12; Fl 3: 2; I Jo 3: 10). Os Apóstolos invocaram os Salmos imprecatórios (At 1: 20; cf. Sl 69: 25; 109: 8). Ananias e Safira foram mortos (At 5: 1-5), e Elymas foi cegado (At 13) – ambos por Deus. Paulo e os santos Mártires tem expectativas de justiça pela violência sofrida (2 Tm 4: 14; Ap 6: 9-10). Estes temas refletem a bondade e a severidade de Deus (Rm 11: 22).

Fonte:
COPAN, Paul; FLANNAGAN, Matthew. Did God Really Command Genocide? Coming to the Terms with the Justice of God. Grand Rapids, MI: Baker Books, 2014, pp. 37-47.
Tradução Walson Sales.

Notas de rodapé:
[1] René Girard, Things Hidden Since the Foundation of the World, trans. Stephen Bann and Michael Metteer (Stanford, CA: Stanford University Press, 1987), 157-58.
[2] Peter C. Craigie, The Problem of War in the Old Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), 43.
[3]Ibid., 54.
[4] Thomas W. Mann, Deuteronomy (Louisville: Westminster John Knox, 1995), 149.
[5] Peter Enns, “Is Peter Enns a Marcionite?,” Rethinking Biblical Christianity (blog), January, 17, 2014, http://www.patheos.com./blogs/peterenns/2014/01/is-pete-enns-a-marcionite/. Agradecimentos a Eric Seibert por seus úteis comentários sobre um antigo esboço deste capítulo (email a Paul Copan datado de 26, 2014) e também pela indicação da postagem no blog de Peter Enns.
[6] Eric Seibert, The Violence of Scripture: Overcoming the Old Testament´s Troubling Legacy (Minneapolis: Fortress Press, 2012); e Disturbing Divine Behavior (Minneapolis: Fortress Press, 2009).
[7] Eric Seibert, “When the ‘Good Book’ Is Bad,” Rethinking Christianity (blog), 1 de Fevereiro de 2013, http://www.patheos.com./blogs/peterenns/2013/02/when-the-good-book-is-bad-challenging-the-bibles-violent-portrayals-of-god/
[8] Seibert, The Violence of Scripture, 9.
[9] Ibid., 26, enfase no original.
[10] Ibid., 8.
[11] Ibid., 9, enfase no original.
[12] Ibid., 117.
[13] Eric Seibert, Disturbing Divine Behavior, 253; veja também o apendice A no livro de Seibert.
[14] Ibid., 57.
[15] Ibid., 119.
[16] Ibid., 127.
[17] veja Rodney Stark, The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western Success (New York: Random House, 2006); Alvin Schmidt, How Christianity Changed the World (Grand Rapids: Zondervan, 2004); Robert D. Woodberry, “The Missionary Roots of Liberal Democracy,” American Political Science Review 106, número 2 (2012): 244-74; Andrea Palpant Dilley, “The World the Missionaries Made”, Christianity Today (Janeiro/Fevereiro de 2014): 34-41.
[18] Peter Enns, “Inerrancy, However Defined, Does Not Describe What the Bible Does,” em Five Views on Biblical Inerrancy, ed. J. Merrick and Stephen M. Garret (Grand Rapids: Zondervan, 2013), 105.
[19] Seibert, Disturbing Divine Behavior, 120.
[20] Sobre este tema veja Gordon Wenham, Psalms as Torah: Reading Biblical Song Ethically (Grand Rapids: Baker Academic, 2012), 167-79, 197-201.
[21] John Stott, Favorite Psalms (Chicago: Moody, 1988), 121.
[22] Ibid.
[23] John Goldingay, Joshua, Judges & Ruth for Everyone (Louisville: Westminster John Knox, 2011), 3.

Nenhum comentário:

Postar um comentário