Por Ayaan Hirsi Ali ( ex-muçulmana devota)
Li obras escritas por ditas “feministas” muçulmanas que buscam reinterpretar o Alcorão. Li estudos de todo tipo e participei de debates entre muçulmanos que tentavam reinterpretar os fundamentos do islã, como a Jihad, o tratamento dispensado às mulheres, a rejeição da ciência.
Os fundamentalistas se referem a esses modernizadores como hereges e infiéis, pessoas que foram confundidas e corrompidas pelo Ocidente. Um exemplo famoso desse grupo é Nasr Abu Zayd, um estudioso egípcio. Ele sugeriu que partes do Alcorão poderiam ser interpretadas de modo compatível com a modernidade. Foi atacado por fundamentalistas, classificado como infiel e obrigado a se divorciar da esposa, uma professora de literatura, com base na argumentação de que ele seria um apóstata (apesar de insistir que ainda era muçulmano) e que uma muçulmana (como a mulher dele) não poderia ficar casada com um não muçulmano. Finalmente, Abu Zayd foi obrigado a fugir para a Holanda.
Uma muçulmana americana de origem iraniana, Laleh Baktiar, escreveu uma nova tradução do Alcorão. Não se trata de um reexame crítico do livro, e sim um aperfeiçoamento de algumas de suas passagens mais cruéis e desumanas por meio de um relaxamento deliberado do seu significado traduzido. Ela também foi ridicularizada pelos fundamentalistas e ameaçada de morte.
Ainda assim, a obra dos chamados intérpretes moderados da fé muçulmana não ajuda na sua tentativa de apresentar um islã mais moderado. Sua leitura se assemelha à tentativa de encontrar os caminhos do seu próprio apartamento depois de colocar uma venda e pedir a alguém que mude os móveis de lugar: a cada passo, depara-se com um obstáculo. A linguagem é muito difícil de compreender, e o raciocínio é ininteligível.
Ordens tão claras no Alcorão como “Bata na mulher desobediente” e “Mate o infiel” se tornam obscuras, e muitas cercas são construídas ao seu redor. Sua reinterpretação parece com “Não bata no rosto dela. Não bata com força suficiente para provocar fraturas. Use apenas um pedaço pequeno de pau” — nada disso consta no original em árabe. Em certa passagem a palavra tharaba é interpretada como significando “deixe-a”, e não “bata nela”, por medo da desobediência. Essa “melhoria” do bater para o deixar é apresentada solenemente, sem nenhuma sugestão de ironia. (A tradutora, tão concentrada em evitar a palavra bater, desconhece as consequências da nova tradução, deixar, que está associada ao leviano direito do marido muçulmano de se divorciar da esposa quando quiser, bastando dizer três vezes em nome de Alá e na presença de duas testemunhas masculinas “Eu me divorcio de ti”.)
O mais notável na tortuosa luta para reinterpretar as escrituras islâmicas é que nenhum desses homens e mulheres inteligentes, reformistas bem-intencionados, é capaz de viver com a ideia de rejeitar completamente as partes problemáticas da escritura. Assim, nas suas mãos, Alá se torna um deus da ambiguidade, e não mais da clareza. De um articulado transmissor da palavra de Alá, Maomé é transformado em alguém que deixou como legado um conjunto confuso de regras incoerentes. Ironicamente, esta foi a posição dos críticos cristãos e judeus que ouviram Maomé pela primeira vez. Descobriram que ele roubou trechos do Velho e do Novo Testamento e também das escrituras judaicas, transformando-os numa bagunça contraditória que ele afirmou ser original.
Essa visão de Maomé está muito longe daquela buscada pelos reformadores. De acordo com eles, Maomé era bom; ele buscou libertar as mulheres, por exemplo, mas suas palavras foram adaptadas e distorcidas, precisando agora de novas adaptações e distorções para criar uma aparência de tolerância e igualdade. Os fundamentalistas não encaram nada bem essas tentativas de reformar o Alcorão e
transformá-lo num documento moderno; para eles, trata-se de uma clara degradação de Alá e Maomé. E acredito que seja neste ponto que os fundamentalistas vencem, pois eles não sofrem daquilo que os psicólogos chamam de dissonância cognitiva. O Deus dos fundamentalistas é todo-poderoso; ele ditou o Alcorão, e precisamos viver como viveu o Profeta. Trata-se de uma posição clara. São os teólogos ocidentalizados que estão presos na confusão, pois querem sustentar que o profeta Maomé era um ser humano perfeito, cujo exemplo deve ser seguido, que o Alcorão é uma escritura perfeita, e que todos os seus mandamentos principais — mate os infiéis, prepare emboscadas, tome a propriedade deles, obrigue-os a se converterem, mate os homossexuais e os adúlteros, condene os judeus, trate as mulheres como gado - são misteriosos erros de tradução.
Livro: Nomade- Ayaan Hirsi Ali - pág 149, 150.
Via Fabiana Ribeiro.
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