"É verdade que tive que pagar um preço em deixar o islã e por dizer o que penso" (Ayaan Hirsi Ali).
Quanto mais eu viajava pelos Estados Unidos, conversando com as pessoas a respeito da minha vida, mais eu ficava impressionada com outras diferenças entre os dois lados do Oceano Atlântico. Assim como os europeus, o público americano sentia uma clara indignação diante das injustiças cometidas contra meninas, apóstatas e infiéis em nome do islã, mas os americanos pareciam muito mais interessados em encontrar soluções, em se voluntariar, mobilizar — e agir. Contudo, apesar de famintos de curiosidades — em todas as palestras que fiz algumas pessoas acabavam sendo impedidas de entrar porque os salões eram pequenos demais —,o público americano também parecia muito menos consciente do que os europeus em relação aos problemas dos quais eu estava falando.
Um exemplo: na Europa praticamente todos já ouviram relatos de famílias muçulmanas que castigam e assassinam mulheres que ultrapassam as fronteiras de seus costumes e sua fé. Relatos assim são publicados com regularidade nos jornais. As pessoas de quase todos os públicos europeus com quem conversei já haviam tomado conhecimento de pelo menos um caso de assassinato brutal de meninas. Assim, a maioria do público europeu já compreendia que os imigrantes muçulmanos criam problemas sociais específicos nos seus países, problemas que com frequência envolvem a opressão das mulheres em solo europeu.
Mas, nos Estados Unidos, fui constantemente surpreendida ao ver que a maioria do público enxergava o islã principalmente como uma questão de política externa — uma questão importante para a segurança do país, talvez, mas essencialmente uma questão que envolve pessoas vivendo no exterior.Sempre que eu fazia uma palestra, os ouvintes americanos se mostravam pasmos, surpresos e indignados diante de conceitos como o casamento infantil, assassinatos cometidos em nome da honra e a mutilação feminina. Raramente ocorria ao público, se é que ocorria, que muitas mulheres e meninas sofrem precisamente esse tipo de abuso em casas e apartamentos em territórios dos Estados Unidos. Sendo assim, qual seria a proporção de meninas e mulheres que sofrem tais abusos em meio a predominância dos conceitos que fazem parte do Islã ?
Mas o público das minhas palestras não podia acreditar. Já tinha me deparado com esse tipo de incredulidade, claro. Dez anos antes, quando comecei a discursar na Holanda contra a mutilações , os holandeses se mostraram tão horrorizados quanto os americanos ao tomar conhecimento do problema. Disseram-me muitas vezes que os imigrantes que procuravam a Holanda sabiam que essa prática ia contra as leis europeias, e portanto isso simplesmente não ocorria com as meninas uma vez que chegavam ao país. Não acreditei que fosse assim. Na verdade, depois de me tornar membro do Parlamento e ajudar a aprovar uma lei exigindo das autoridades que investigassem a situação, confirmamos que meninas eram mutiladas sem anestesia em mesas de cozinha de Roterdã e Utrecht.
Já há escolas muçulmanas na América onde as meninas aprendem durante todo o dia a serem subservientes e a abaixar os olhos, a se cobrir com um véu para simbolizar a supressão de sua vontade individual. São ensinadas a internalizar a superioridade masculina e a entrar silenciosamente na mesquita pela porta dos fundos. Em escolas que ensinam o Alcorão nos fins de semana as meninas aprendem que Alá exige delas obediência, que elas têm valor menor ao dos homens e menos direitos perante eles. Isso também está ocorrendo nos Estados Unidos.
Mas em um ponto o público foi insistente. Os crimes motivados pela honra, os espancamentos sistemáticos e até o assassinato para punir uma filha, irmã ou mãe cujo “ma comportamento” envergonha a família não poderiam ocorrer nos Estados Unidos, a terra da liberdade, não é? Como recém-chegada ao país, eu não fazia ideia se isso era verdade. Mas logo descobriria que esse aspecto da cultura disfuncional do islã já tinha chegado ao coração da América.
Apesar de ter deixado alguns americanos indignados com as histórias que contei a respeito da institucionalização da misoginia no islã, eu era assombrada pelo medo de que pudesse inspirá-los a ter pena de mim. Tentei explicar que o objetivo do meu livro de memórias era mostrar como tive sorte. Consegui sair do mundo de dogmatismo e opressão e chegar ao calor da luz da independência e da liberdade de pensamento. Eu escapei, e em cada estágio do processo de fuga fui auxiliada pela boa vontade de não muçulmanos comuns, semelhantes às pessoas que compunham aquelas plateias.
É verdade que tive de pagar um preço por deixar o islã e por dizer o que penso. Tenho de pagar por uma equipe de seguranças que me acompanha 24 horas por dia, por exemplo, por causa das ameaças de morte feitas contra mim. Mas, como o islã exige que todos os que deixarem a religião sejam punidos com a morte, este medo constante é até certo ponto partilhado por todos os muçulmanos que abandonam a fé e também por aqueles que praticam uma forma menos rígida de islamismo.
Em meus livros e palestras procuro inspirar os leitores e ouvintes a pensar nos outros, naqueles que ainda estão trancafiados no mundo que deixei para trás. Uso casos da minha vida e histórias das mulheres que conheço, que entraram em contato comigo por e-mail ou que se aproximaram de mim e fizeram seus relatos. Ao fazer retratos verbais delas, tento ajudar o público a vê-las como pessoas reais. Por trás do véu há seres humanos de carne e osso, de mente e alma, e uma vez que nos damos conta do sofrimento que o véu oculta é difícil olhar para o outro lado.
Estou falando de meninas que adoram aprender, mas que são tiradas da escola quando entram na puberdade, porque suas famílias temem que sofram influências impróprias na escola e manchem sua pureza. Meninas são casadas com adultos que jamais conheceram. Mulheres anseiam por vidas produtivas de trabalho, mas em vez disso veem-se confinadas entre as paredes da casa do pai ou do marido. Meninas e mulheres são espancadas, com força e frequência, devido a um olhar de soslaio, à suspeita de que usaram batom, por uma mensagem de texto; não têm para onde correr porque seus pais, sua comunidade e seus pregadores aprovam esses castigos humilhantes.
A primeira reação da maior parte do público americano era de espanto; a segunda era de compaixão diante da história dos horrores rotineiros da vida de uma muçulmana, mesmo quando resistiam a acreditar que aquilo pudesse ocorrer no seu próprio país. Mas havia uma exceção, um público que não reagia dessa forma. Eu o encontrei nas universidades, exatamente o tipo de ambiente no qual esperava encontrar curiosidade, um debate animado e, por que não, a animação e a energia de ativistas que pensassem como eu. Em vez disso, o público que encontrei em cada campus parecia transbordar de raiva e protesto. Eu já estava acostumada a ver estudantes muçulmanos radicais por causa da minha experiência como ativista e política na Holanda.
Sempre que eu fazia um discurso público, eles apareciam como um enxame que gritava contra mim e se queixava usando frases num holandês tão precário que levava uma pessoa a se perguntar como aquelas pessoas poderiam ser consideradas estudantes. Nos campi universitários dos Estados Unidos e do Canadá, jovens extremamente articulados de associações estudantis muçulmanas simplesmente sequestravam o debate. Com antecedência, enviavam e-mails de protesto aos realizadores, como uma mensagem (encaminhada por um seminarista de Harvard) que se queixava do fato de eu não “abordar nada de substancial que realmente afete a vida das muçulmanas” e de que eu simplesmente desejava “difamar” o islã. Pregavam cartazes e distribuíam panfletos no auditório.
Antes mesmo de eu encerrar minha fala já faziam fila diante do microfone, sem deixar espaço para os não muçulmanos. Falavam um inglês irretocável, mostravam-se em geral muito educados e pareciam ter se tornado muito mais bem assimilados do que os imigrantes que viviam na Europa. Era muito pequeno o número de homens barbados usando batas que só deixavam os tornozelos à mostra, imitando a tradição segundo a qual os companheiros do Profeta se vestiam assim por humildade, e eram poucas as mulheres que usavam os horríveis véus negros. Nos Estados Unidos, um muçulmano radical pode usar um cavanhaque; uma menina pode usar um lenço leve e atraente sobre a cabeça. Todo o seu comportamento era muito menos ameaçador, mas eles eram onipresentes.
Alguns deles começavam dizendo como sentiam por todo o terrível sofrimento de que fu alvo, mas acrescentavam então que os chamados traumas que eu vivera eram uma aberração, uma “questão cultural” que não tinha nada a ver com o islã. Ao culpar o islã pela opressão contra as mulheres, diziam eles, eu os estava vilipendiando pessoalmente, como muçulmanos. Eu não teria sido capaz de compreender que o islã é uma religião de paz, que o Profeta tratava muito bem as mulheres. Muitas vezes fui informada de que atacar o islã serve apenas aos propósitos de algo chamado “feminismo colonial”, que seria um pretexto para a guerra contra o terror e os planos malignos do governo americano.
Livro: Nômade - Do Islã para América ( Ayaan Hirsi Ali)
Via Fabiana Ribeiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário