Por William Lane Craig
*Asseidade Divina*
A asseidade (do latim *a se* "por si") refere-se à auto-existência ou independência de Deus. Deus não existe meramente em todos os mundos possíveis (por maior que seja), mas, ainda mais grandiosamente, Ele existe em todos os mundos, e é independente de todas as coisas. A Escritura afirma a palavra divina pré-existente: "Todas as coisas foram feitas por ele e sem ele nada do que foi feito se fez" (João 1.3). Deus é único em Sua asseidade; todas as outras coisas existem *ab alio* (através de outro).
A asseidade divina confronta um sério desafio de uma das mais antigas e persistentes doutrinas filosóficas: *o Platonismo,* que sustenta que além de objetos concretos como pessoas e planetas, também existem esferas separadas de objetos abstratos como números, conjuntos, proposições, e propriedades. Esses objetos, embora abstratos e geralmente defendidos como existentes além do tempo e do espaço, são, no entanto, tão reais quanto os objetos físicos familiares de nossa experiência diária. Eles existem necessariamente, pois é inconcebível que exista, por exemplo, um mundo possível sem números ou proposições, mesmo que esse mundo fosse completamente desprovido de outros objetos concretos além do próprio Deus. Além disso - e este é o ponto crucial, eles existem *a se*. Não há causa para a existência de tais entidades; cada uma delas existe independentemente uma da outra e de Deus. É essa característica do Platonismo, mais do que qualquer outra, que incomodou muitos teístas Cristãos. Não só existe um número infinito de tais objetos (há um número infinito de números naturais por si só), mas há ordens cada vez mais altas de tais objetos infinitos, infinidades de infinitos, de modo que Deus é totalmente diminuído pela multidão inimaginável desses objetos. Deus se encontra em meio a esferas incriadas e infinitas de seres que existem tão necessariamente e independentemente como Ele. A dependência da criação física de Deus para sua existência torna-se uma trivialidade infinitesimal em comparação com a existência da infinitude de seres que existem independentemente dEle. O Platonismo, portanto, implica num pluralismo metafísico que é incompatível com a asseidade singular de Deus.
Alguns filósofos Cristãos contemporâneos têm buscado reconciliar a existência de tais objetos abstratos com a asseidade divina, negando que esses objetos existam *a se*, mesmo que existam necessariamente. De acordo com esse *Platonismo modificado*, enquanto tais objetos existem em todos os mundos possíveis, eles são contudo seres criados, assim como os objetos físicos. Eles não são criados por Deus a qualquer momento, mas são eternamente criados por Ele. Deus não é temporalmente anterior à existência de tais objetos, mas é causal ou *explanatoriamente anterior* à existência desses objetos.
Mas dois problemas ameaçam estragar essa solução simples: (1) Como tais entidades existem necessariamente, elas são obviamente independentes da vontade divina. Deus não é livre para se abster de criar tais seres. Mas é central a doutrina Cristã da *criação* a convicção de que a criação é o ato voluntário de Deus, que Deus, se quisesse, poderia permanecer sozinho sem qualquer exigência de produzir um mundo de criaturas. (2) Ainda mais seriamente, a solução parece incoerente. Pois, para criar, digamos, propriedades, Deus já deve exemplificar certas propriedades. Para criar a propriedade de *ser poderoso*, por exemplo, Deus já deve ter a propriedade de ser poderoso. (Lembre-se que, de acordo com o Platonismo, as propriedades existem separadas de suas instâncias ou abstratos particulares.) Não pode ser dito coerentemente que Deus cria Suas próprias propriedades, uma vez que, para criá-las, Ele já deve possuí-las. É claro que Deus e propriedades existem atemporalmente na visão proposta, mas acontece que as propriedades de Deus devem ser explanatoriamente anteriores à sua própria existência, o que é incoerente.
Historicamente, a maioria dos teólogos Cristãos não adotaram o Platonismo modificado. Em vez disso, a maioria seguiu Santo Agostinho ao adotar alguma forma de *conceitualismo* como uma explicação da existência de objetos abstratos. Agostinho identificou as formas Platônicas com as *Ideias Divinas*, sustentando que os objetos abstratos têm uma realidade conceitual como o conteúdo da mente de Deus. Assim, esses objetos não existem independentemente de Deus, nem mesmo fora de Deus, mas apenas dentro de Sua mente. Assim, o número sete, a proposição de que 2 + 2 = 4 e a propriedade de vermelhidade, por exemplo, são todas ideias concebidas por Deus.
O Conceitualismo oferece respostas às dificuldades levantadas em conexão com o Platonismo modificado. (1) Como as ideias divinas pertencem à mente divina e não são objetos abstratos externos, eles não fazem parte da ordem criada. Assim, sua existência necessária não é incompatível com o caráter voluntário da criação. Mesmo em mundos possíveis nos quais Deus se abstém da criação, Ele ainda existe com Suas ideias. Assim como os valores morais estão enraizados na natureza moral de Deus, de tal forma que Seus mandamentos morais são expressões necessárias de Sua natureza, assim a mente divina opera de acordo com as verdades logicamente necessárias. A necessidade da lógica e da matemática pode ser vista como fundamentada na necessidade do intelecto de Deus. (2) Se os objetos abstratos têm uma realidade conceitual, então eles não existem explanatoriamente antes da concepção de Deus deses objetos. Isso não implica que Deus não seja onipotente, onisciente, eterno e todo o resto naquele momento explanatoriamente anterior. Assim como teólogos medievais como Boécio, Tomás de Aquino e Ockham pensavam em uma propriedade universal conceitualizada como explanatoriamente posterior ao abstrato relevante particular, de modo que, o ser de Deus, de certo modo, não precisa ser interpretado em termos de instanciar um universal; antes, o universal é conceitualmente abstraído do particular. Assim, para que propriedades e outros objetos abstratos sejam o resultado da intelecção divina, eles não precisam existir antes de si mesmos.
Essas são questões extremamente difíceis e não resolvidas, e podemos esperar uma discussão mais aprofundada sobre o Platonismo modificado, Conceitualista e outras perspectivas sobre a asseidade divina por parte dos filósofos Cristãos. Por enquanto, podemos concordar que Deus é exclusivamente auto-existente, e objetos abstratos devem ser considerados como de algum modo fundamentados em Deus.
Fonte:
Tradução Walson Sales.
Nenhum comentário:
Postar um comentário