quarta-feira, 7 de agosto de 2019

A Importância da evidência paulina para os Evangelhos

Os documentos neotestamentários mais antigos, como chegaram até nós, são as cartas escritas pelo apóstolo Paulo antes de sua prisão em Roma (c. 60-62 d.C.). Não se pode provavelmente atribuir ao mais antigo dos evangelhos em sua forma atual uma data anterior ao ano 60, mas da produção de Paulo temos dez epístolas datadas entre 48 e 60 d.C.
Paulo era cidadão romano, embora de estirpe judaica (o nome original israelita era Saulo), nascido por volta do início da era cristã na cidade de Tarso na Cilícia, Ásia Menor. No dizer do próprio apóstolo, Tarso era, naqueles dias, “cidade de importância” (At 21.39), eminente centro da cultura grega, que não poderia deixar sua marca no apóstolo, como demonstram seus discursos e escritos. Fora educado em Jerusalém sob os cuidados do mestre Gamaliel (At 22.13), o mais renomado rabino da época e um líder dos fariseus. Rapidamente alcançou distinção entre os contemporâneos em razão da diligencia com que se entregava aos estudos e do fervor com que sustentava as tradições ancestrais da nação judaica (Gl 1.13s.). Talvez tenha chegado mesmo à posição de membro do Sinédrio, à corte suprema da nacionalidade, - embora seja este um dado incerto.

Esse zelo para com a lei tão logo o colocou em conflito com os cristãos primitivos de Jerusalém, especialmente com os do círculo a que pertencia Estevão, cujo ensino deve ele de ter ouvido na sinagoga frequentada pelos judeus oriundos da Cilícia (At 9), os quais não tardaram a perceber, com compreensão excepcional e aguçada, que o evangelho afetava os próprios fundamentos, as raízes tradicionais do culto e da lei cerimonial judaica. Quanto ao momento da execução e Estevão, vemos Paulo participando dos acontecimentos e aprovando-lhe a morte. Em seguida, toma medidas para banir o novo movimento, que, a seus olhos, conforme revela a atividade de Estevão, constituía ameaça mortal a tudo quanto eram mais caro para o judaísmo (At 7.58; 8.1s.; 9.1s.; 22.4; 26.9s.; 1Co 15.9, etc.). Em suas próprias palavras: “Pois já ouviste como era o meu procedimento no judaísmo, como eu perseguia violentamente a igreja de Deus, tentando destruí-la” (Gl 1.13) – até o encontro com Jesus no caminho de Damasco, que convenceu a mente e a consciência de Paulo da realidade da ressurreição d Cristo, e logo em seguida, do valor das afirmações cristãs, pelo que se tornou o principal arauto da fé, que tão diligentemente perseguia antes.

É razoável acreditar que deve ter sido de natureza singularmente impressiva a evidencia que levou um homem de tal formação religiosa a abandonar decididamente crenças, até então sustentadas com empenho, em favor de um movimento a que se opusera de forma tão enérgica. Há muito tempo, a conversão de Paulo tem sido considerada como uma evidencia relevante d verdade do cristianismo. Muitos têm aceitado a conclusão do famoso estadista do século dezoito, Lord George Lyttelton, de que “a conversão e o apostolado de São Paulo, devidamente considerados, valem por si mesmos como demonstração suficiente para provar que o Cristianismo é uma revelação divina.
Nessas considerações, contudo, estamos interessados principalmente na informação derivada das próprias epístolas. Elas não foram escritas com o objetivo de narrar os fatos da vida e do ministério de Jesus; foram endereçadas a crentes, pessoas que já tinham pleno conhecimento da história do evangelho. Mas, independente disso, podemos encontrar nelas material suficiente para elaborar um esboço adequado da pregação apostólica primitiva a respeito de Jesus Cristo. Paulo insiste na pré-existência divina de Jesus (Cl 1.13s.), mas, ao mesmo tempo, reconhece-o como ser humano real (Gl 4.4), descendente de Abraão (Rm 9.5) e de Davi (Rm 1.3); reitera que Cristo viveu debaixo da lei judaica (Gl 4.4), foi traído e, na noite em que foi entregue, instituiu a ceia memorial com o pão e vinho (1Co 11.23s.); sofreu a pena romana da crucificação (Fp 2.8; 1Co 1.23; Gl 3.13; 6.14, etc.), embora a responsabilidade por sua morte seja imputada aos representantes da nação judaica (1Ts 2.15); foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia e, depois, foi visto vivo por muitas testemunhas, em várias ocasiões, numa das quais havia mais de quinhentas pessoas presentes, a maioria delas ainda vivas, cerca de vinte e cinco anos mais tarde (1Co 15.4s.). Nesse resumo de evidências da realidade da ressurreição de Cristo, Paulo revela atenção especial à necessidade de coletar testemunhos pessoais em apoio ao que bem poderia parecer uma asserção absurda.

Paulo demonstra conhecimento dos apóstolos do Senhor (Gl 1.17s.), dentre os quais menciona nominalmente como “pilares” da comunidade de Jerusalém Pedro e João (Gl 2.9). Jesus referindo-se, de modo semelhante, a Tiago (Gl 1.19; 2.9). Paulo sabe que os irmãos e apóstolos de Cristo, inclusive Pedro, eram casados (1Co 9.5) – ponto incidental de harmonia com o relato do evangelho quanto à cura da sogra de Pedro (Mc 9.30). Ocasionalmente, refere-se a pronunciamentos de Jesus a respeito de determinados assuntos – e.g., em relação ao casamento, ao divorcio (1Co 7.10) e o direito ao sustento material dos pregadores do evangelho (1Co 9.14; 1Tm 5.18, cf. Lc 10.7); e as palavras que Jesus usou na instituição da santa ceia (1Co 11.23s.).

Mesmo quando não cita textualmente as expressões ou palavras de Jesus, deixa patente através de seus escritos quão familiarizado era com os ensinos do Senhor. Para tanto, basta confrontar a porção ética da Epístola aos Romanos (12.1-15.7), em que Paulo sumariza as implicações práticas do evangelho para o viver dos crentes, com o Sermão do Monte. Ademais, tanto nessa porção como em outras, o principal argumento de Paulo em sua instrução moral é o exemplo do próprio Cristo. O caráter d Cristo, como Paulo apresenta, está em perfeito acordo com o que se registram os evangelhos. Quando o apóstolo fala da “mansidão e bondade de Cristo” (2Co 10.1), somo imediatamente lembrados das próprias palavras de Jesus: “sou manso e humilde de coração” (Mt 11.29). A autonegação de Cristo é algo sobre o qual Paulo declara: “porque também Cristo não agradou a si mesmo” (Rm 15.3); e assim como o Cristo dos evangelhos levou seus seguidores a negarem a si mesmos (Mc 8.34), também insiste o apóstolo em que, segundo o mesmo exemplo de Cristo, é nosso dever cristão “suportar as fraquezas dos fracos, em vez de agradar a nós mesmos” (Rm 15.1). Aquele que disse: “Eu, porém, estou entre vós como quem serve” (Lc 22.27), e desempenhou a tarefa servil de lavar os pés dos discípulos (Jo 13.4s.) é o mesmo que, na afirmação de Paulo, assumiu “a forma de servo” (Fp 2.7). Em uma palavra, quando Paulo quer recomendar aos leitores todas as qualidades morais que adornam o Cristo dos Evangelhos, ele o faz em linguagem como esta: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13.14).

Em resumo, o esboço da história dos evangelhos que podemos estabelecer tomando por base os escritos paulinos se harmoniza perfeitamente com o delineamento que encontramos em todas as partes do Novo Testamento, particularmente com o quadro estampado nos quatro evangelhos. Com insistência, o próprio Paulo procura salientar que o evangelho que pregava era um só e o mesmo evangelho que proclamavam os demais apóstolos (1Co 15.11) – afirmação notável, considerando-se que Paulo não era nem companheiro e Cristo, durante o ministério terrenos do Mestre, nem dos apóstolos originais, afirmando com vigor sua completa independência destes.

(Merece Confiança o Novo Testamento? F.F Bruce)
Por Rafael Félix.

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