domingo, 1 de março de 2020

COMO LUTERO SE TORNOU REFORMADOR

Martinho Lutero (1483-1546) nasceu em Eisleben, na Saxônia, descendente de uma família de camponeses. O pai trabalhava numa mina de ferro e era homem de parcos recursos, durante a infância de Lutero; mas, progredindo depois, conseguiu dar ao filho uma educa¬ção aprimorada.  O preparo religioso de Lutero teve como base aquela piedade simples da família alemã na Idade Média, de mistura com a superstição característica da era medieval. Na sua infância, como na idade adulta, foi profundamente religioso, mas sem exageros, revelando alegria de viver. Aos 18 anos ingressou na mais famosa universidade alemã, a de Erfurt, com o propósito, como era o desejo do pai, de estudar Direito. Levou quatro anos nos estudos preliminares da sua futura carreira profissional, aprofundando-se na filosofia medieval. Era muito estudioso, orador fluente e polemista, gostava de música e era muito sociável. Já estava para iniciar a sua vida profissional, quando, repentinamente, para grande desapontamento do pai e dos amigos, tornou se monge, entrando para o Convento dos Agostinhos em Erfurt. Tomou-se ansioso por sua salvação; como ele próprio dizia, duvidava de si mesmo. Para um homem medieval, o caminho mais acertado para a salvação era o da vida monástica. Esse caminho Lutero seguiu, sacrificando, por causa da salvação da sua alma, tudo o que o mundo lhe podia oferecer.

No mosteiro, sustentou consigo mesmo uma tremenda batalha espiritual. Tinha entrado ali à procura da salvação, mas não encontrou a paz e a segurança de quem está no caminho de Deus. Excedeu-se em jejuns, vigílias, flagelações e procurava no seu confessor a absolvição para os mais leves pecados, até que o aconselharam a moderar a sua austeridade e confessar-se menos vezes. Foi, em vários aspectos, um monge de vida modelar e se tomou famoso na Ordem, por sua piedade. Não obstante, a sua alma ardia com o sentimento do pecado e com o pensamento constante de estar debaixo da ira divina. Tentou seguir o caminho da salvação segundo o ensino da Igreja medieval, e sentiu que tal ensino era totalmente ineficaz para o que sua alma ansiava. Livrou-se dessa indescritível angústia, desse terror espiritual, pelo que lhe foi revelado a respeito da verdade central do Evangelho de Cristo. A isso foi levado por várias influências. O vigário geral da sua Ordem, Staupitz, ensinou-lhe que Deus era misericordioso. Para Lutero, Deus só fazia castigar o pecador por meio da sua Justiça. Além disso, Staupitz deu-lhe trabalho, coisa que lhe foi muito agradável: a cadeira de Filosofia na nova universidade de Wittenberg. Lutero também encontrou a verdade a respeito da graça divina para com os pecadores, na obra de Bernardo de Claraval. Ao lado de tudo isso, era ardente leitor da Bíblia, especialmente naquilo que se relacionava com o seu ensino de Teologia em Erfurt, pois então já tinha deixado Wittenberg.

Antes de se revelar como reformador, Lutero teve uma vida muito agitada. Entrou no mosteiro em 1505, foi ordenado em 1507, em 1508 foi a Wittenberg, em 1509 a Erfurt, em 1511 foi convidado a ensinar na universidade de Wittenberg, cidade em que residiu daí em diante. No verão de 1511, a negócios da sua Ordem, fez uma visita a Roma, visita que tem sido muito mal entendida. Rezou em muitas igrejas e lugares sagrados de santos e de mártires. Viu muitas relíquias e ouviu muitas histórias dos seus poderes milagrosos. Para livrar seu pai do purgatório, subiu de joelhos a Scala Sancta, a escadaria que se diz ter sido trazida da casa de Pilatos, repetindo, em cada degrau, o Pai Nosso. Ao chegar ao topo, surgiu-lhe a pergunta: “Quem sabe se tudo isso é verdade?” Mas isso logo passou, apesar de escandalizado com muita coisa que vira em Roma. Não obstante, sua fé na Igreja não sofreu arrefecimento. Voltou ao mosteiro e ao seu ensino. Em 1512, tomou-se doutor em teologia em Wittenberg. Depois ele próprio confessou que, a esse tempo, era ainda ignorante do Evangelho.

Porém no fim de 1512 e início de 1513, enquanto lia a Epístola aos Romanos, em sua cela, encontrou estas palavras: “Mas o justo viverá pela fé”. Isso, então, como que lhe incendiou a mente; vislumbrou aquela verdade que vinha procurando havia tanto tempo: que a salva¬ção lhe pertencia simplesmente pela confiança, pela fé em Deus por intermédio de Jesus Cristo, e não por qualquer obra que ele próprio realizasse. Ainda, então, não tinha entendido plenamente essa verdade. Prosseguindo no seu ensino, avançou mais através das leituras de Agostinho, de Anselmo e, especialmente, no estudo dos Salmos e das Epístolas de Paulo. Pelo estudo desses livros da Bíblia, nas suas preleções, ele afirmou com clareza sempre crescente e profunda certeza a sua mensagem: que Deus salva os pecadores mediante a fé no seu amor revelado em Cristo. Lindsay disse que uma grande verdade inspirou a quatro grandes cristãos: Paulo, Agostinho, Francisco de Assis e Lutero. E essa verdade é: “A confiança em Deus todo misericordioso, que se revelou em Jesus Cristo, outorga aquela comunhão com Deus, aquele companheirismo, comparado com o qual, tudo o mais nada significa”. Essa é a verdade da justificação pela fé. Contra essa verdade e acima dela, pairava o ensino da Igreja medieval de que o homem pode alcançar a salvação pelas obras, pelos sacramentos que a igreja, que se dizia divinamente autorizada, prescrevia. Mas Lutero estava convicto de que sua mensagem era verdadeira, porque na sua grande luta e prolongado estudo havia se encontrado com Deus, por assim dizer, face a face por sua revelação. Dessa experiência, ele trouxe o novo impulso da vida religiosa, impulso necessário para reformar a Igreja cristã que tinha sido romanizada e paganizada.

Por mais de quatro anos, Lutero trabalhou em Wittenberg sem romper com a Igreja. Tomou-se líder da sua Ordem, muito ocupado com a administração dela. Suas lições e preleções na Universidade tinham uma nova orientação, consistindo de explicações das Escrituras em vez de repetições dos padres e doutores, e a aplicação da verdade bíblica à vida do seu tempo. Essas pregações atraíram estudantes à universidade e pessoas da cidade ao salão das suas preleções. Pregava muito, com notável simplicidade e com poder da nova verdade descoberta que não era verdade nova. Estava ele chegando a uma melhor compreensão do que essa verdade significava com relação à autoridade da Igreja. Afinal, alguma coisa o forçou a falar publicamente a respeito dessa grande verdade.

Numa localidade próxima a Wittenberg apareceu, em 1517, um homem chamado Tetzel, enviado pelo arcebispo da Mogúncia para vender indulgências emitidas pelo papa. De toda parte, muita gente vinha comprar essas indulgências. Elas ofereciam a diminuição das penas no purgatório. Essa gente, porém, pensava, por causa da forte propaganda de Tetzel sobre a verdade da sua mercadoria, que, com a compra das indulgências, conseguiria o perdão dos pecados. O que chegou ao conhecimento de Lutero por meio do confessionário convenceu-o de que o tráfico de indulgências estava desviando o povo do ensino a respeito de Deus e do pecado e enfraquecendo seriamente a vida moral de todo o povo. Decidiu, então, enfrentar tão grande erro e abuso.
Nas universidades medievais era costume apor-se, em lugares públicos, a defesa ou ataque de certas opiniões. Esses escritos eram chamados “teses”, nas quais se debatiam as ideias e se convidavam todos os interessados para o debate.

Em 31 de outubro de 1517, véspera do Dia de Todos os Santos, quando enorme multidão comparecia à Igreja do Castelo, na cidade de Wittenberg, Lutero colocou às portas dessa igreja as 95 teses que tratavam do caso das indulgências. Nelas declarava que a Igreja podia perdoar somente o que ela exigia, isto é, sentenças quanto a disciplina, e que as indulgências eram nulas para efeito de remover a culpa ou afeta - a situação das almas no purgatório, e que o cristão arrependido tinha o seu perdão vindo diretamente de Deus, sem a intervenção de indulgências. Não obstante Lutero não perceber plenamente, as teses foram um golpe no coração do poder dessa Igreja, pois as teses negavam o pretenso poder da Igreja de ser mediadora entre o homem e Deus e de conferir perdão aos pecadores. Enquanto cópias dessas teses eram vendidas por toda a Alemanha, tão depressa fossem impressas, o papa Leão X começou a agir contra esse monge rebelde. Primeiro intimou Lutero a ir a Roma, o que significaria morte certa. Mas o Eleitor da Saxônia, interessado pelo famoso professor da sua universidade, protegeu-o, ordenando que seu caso fosse discutido e ouvido na Alemanha. Seguiram-se, então, as conferências com os legados do papa, que não conseguiram demover Lutero do seu ponto de vista. Pelo contrário, num debate em Leipzig, no qual fora desafiado por um defensor da Igreja, ele declarou, como resultado dos estudo que fizera, que o papa não tinha autoridade divina e que os concílios eclesiásticos não eram infalíveis. Essas afirmações significaram seu rompimento definitivo e irrevogável com a Igreja papal.

Aberta, assim, a sua luta, prosseguiu sem temor, desenrolando-se com muita rapidez. Desenvolvendo uma atividade literária fora do comum, colocou o seu caso diante do povo alemão que demonstrara geral simpatia pelos debates em curso. Uma das suas publicações dessa época, e talvez a maior das suas obras, foi o apelo A Nobreza Cristã da Alemanha. Era uma convocação a toda a Alemanha para unir-se contra Roma. Lutero negou que o papa e o clero tivessem sobrenaturais poderes sacerdotais, dando assim um golpe nas próprias raízes da autoridade que dominou a Europa tão duramente, por muitos e muitos séculos, com tremendo poder. Ele provou que todos os cristãos são sacerdotes, tendo acesso à presença de Deus mediante a fé em Cristo. Negou que somente o papa pudesse interpretar as Escrituras. Estas, disse ele, podiam ser interpretadas por qualquer crente sincero. Exprobou e denunciou a corrupção do papado, especialmente a ambição e as extorsões do§ papas e a ambição da corte papal que se deixava corromper em tudo quanto empreendia. Finalmente traçou um plano para organizar uma Igreja nacional alemã, independente e reformada. Quatro mil cópias desse livro foram vendidas em apenas uma semana.  O povo começou a ver que ali, afinal, estava o homem providencial para proceder a uma reforma desde há muito ansiosamente desejada. Todos viram também que qualquer pessoa podia ser verdadeiramente cristã sem ter necessidade de prestar obediência ao papa. Além de tudo, Lutero já se tomara conhecido e respeitado como um homem devoto e de caráter austero.

Enquanto esse livro era impresso (agosto de 1520), publicava-se na Alemanha a bula papal de excomunhão que Lutero já esperava. A bula o obrigava, e aos seus simpatizantes e seguidores, a se retratarem de suas “heresias” no prazo de sessenta dias, e ainda determinava que, se eles não o fizessem, seriam tratados como hereges - isto é, seriam condenados à morte. A todos os fiéis foi ordenado queimar os livros de Lutero, o que fizeram os legados do papa. Mas essa história de queimar livros era um jogo que ambos os lados podiam fazer. A 10 de dezembro de 1520, em Wittenberg, foi anunciado um acontecimento notável por Filipe Melanchton. Tinha vindo ele para ali, havia dois anos, como professor de grego, tendo, então, 21 anos. Punha-se ele, com todas as suas forças, ao lado da causa de Lutero. Nesse anúncio convidava-se os estudantes para assistirem, naquele dia, à queima dos “livros maus dos decretos papais e dos teólogos escolásticos”. Diante de grande multidão de estudantes, professores, cidadãos de todas as classes, Lutero atirou à fogueira os livros e a então última de todas as bulas do papa. Essa cena, em que se misturavam bom humor e sublime coragem, era característica da personalidade de Lutero. Foi, de fato, sublime a sua coragem. Um pobre monge, sustentado unicamente por sua fé em Deus, enfrentou sorridente o tremendo poder que os homens julgavam autorizado e amparado por Deus para abrir e fechar as portas da vida eterna. Começou naquele dia uma nova era na história humana.

No mês seguinte, o papa publicou a terrível sentença final, excomungando Lutero e o condenando a todas as penalidades consequentes da heresia. Essa bula, para ter efeito, dependia do poder civil para levar Lutero à morte. Desse modo, o caso tinha de ir à Dieta Imperial que iria se reunir nesse mesmo ano (1521) em Worms. Era a primeira Dieta do governo do Imperador Carlos V. O papa estava exercendo forte pressão sobre ele para assegurar-se da condenação de Lutero. Além disso, as ideias religiosas pessoais do imperador convenceram-no de que devia apressar o caso. Citado a comparecer perante a Dieta, Lutero, certo de que marchava para a morte, foi destemidamente. As multidões que até dos telhados o aclamavam pelas cidades por onde passava na sua longa e penosa viagem, o convenceram de que seu ideal estava alcançando real progresso e de que ele não estava sozinho. Lutero ganhara rapidamente numerosos amigos e incontáveis seguidores de todas as classes do seu povo: nobres, cidadãos, homens de cultura, ricos e pobres. Era agora o líder de um forte movimento na Alemanha. Quando se apresentou na Dieta, não era mais aquele monge solitário, mas, sim, um campeão de um grande partido nacional que exigia uma Igreja alemã livre dos grilhões de Roma, uma Igreja reformada.

Chegado à Dieta, foi colocado diante de certos livros que escrevera e solicitado a se retratar do que escrevera. No dia seguinte apresentou sua notável defesa na presença dos mais poderosos homens do seu país. “Diante dele estavam o imperador e seu irmão Fernando, Arquiduque da Áustria... e ao lado deles, sentados, todos os Eleitores e grandes Príncipes do Império, leigos e clérigos, entre estes quatro cardeais. Ao redor dele ficaram os condes, os nobres livres, os Cavaleiros do Império e os delegados das grandes cidades, todos formando um só bloco. Embaixadores de quase todos os países da Europa ali estavam avultando a multidão - pronta para testemunhar o feito desse memorá¬vel dia. Lutero falou vagarosa, calma e confiantemente; e em alguns momentos, com tal poder, que emocionou todos os corações. Recusou modificar a sua posição.”

Ao fim da defesa, o imperador, por intermédio de um oficial, perguntou-lhe se estava disposto a se retratar das afirmações que fizera, negando autoridade a certas decisões de alguns concílios - uma questão que naturalmente envolvia toda a matéria que se relacionava com a autoridade da Igreja. A sua resposta foi: “É impossível retratar-me, a não ser que me provem que estou laborando um erro, pelo testemunho das Escrituras ou por uma razão evidente; não posso confiar nas decisões dos concílios e dos papas, pois é evidente que eles não somente têm errado, mas se têm contradito uns aos outros. Minha consciência está alicerçada na Palavra de Deus, e não é seguro nem honesto agir-se contra a consciência de alguém. Assim Deus me ajude. Amém”.

A Dieta dissolveu-se em meio de grande confusão. Os espanhóis gritaram: “À fogueira com ele!” Mas os alemães dele se acercaram; e quando saíram do auditório, todos juntos e Lutero no meio deles, empunharam suas armas e levantaram as mãos acima da cabeça ao modo como costumava fazer um cavaleiro alemão quando derrubava seu antagonista num torneio.

Ele havia sido, de fato, o vencedor. Depois de alguns dos seus mais fiéis defensores se terem retirado, a Dieta, sob pressão do imperador, proclamou o edito de Worms que punha Lutero fora da Lei e decretava a destruição dos seus simpatizantes. Mas a Alemanha zombou do edito e nenhuma tentativa séria jamais foi realizada para levar a efeito a sentença contra Lutero. Ele agora era o líder do movimento religioso nacional a que dera origem, por seu bravo testemunho a favor da verdade evangélica, como Deus lha tinha revelado.

Extraído do livro: “História da Igreja Cristã” do autor “Robert Hastings Nichols”.

Por Nivaldo Gomes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário