domingo, 24 de maio de 2020

O Argumento Moral


Capítulo seis do livro:Passionate Conviction: Contemporary Discourses on Christian Apologetics, editado por Paul Copan e William Lane Craig  Obs.: “Traduzindo trechos e buscando editoras interessadas na publicação”


Por Paul Copan

Durante a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C., incluindo uma trégua de seis anos), os habitantes da ilha de Melos tentaram permanecer neutros na guerra entre Atenas e Esparta. Infelizmente Melos não conseguiria se eximir. Atenas exigiu pagamento de tributo, oferecendo paz em troca. Os habitantes de Melos tentaram negociar, apelando ao seu direito ao próprio império. Os Atenienses rejeitaram as “frases educadas” dos moradores de Melos sobre dever e moralidade. Os Atenienses perguntaram aos seus interlocutores:
para não imaginar que vocês nos influenciarão dizendo ... que nunca nos prejudicaram ... pois vocês sabem tão bem quanto nós que, quando esses assuntos são discutidos por pessoas práticas, o padrão de justiça depende da igualdade de poder para obrigar e que, de fato, os fortes fazem o que têm o poder de fazer e os fracos aceitam o que têm de aceitar.[1]
Os habitantes de Melos responderam, alegando que os interesses dos Atenienses seriam melhor atendidos preservando os princípios da justiça e da conduta correta - afinal, eles também poderiam ser atacados um dia. Os moradores de Melos estavam apelando para a Regra de Ouro - fazer aos outros como gostariam que outros fizessem a eles; eles consideraram essa norma moral como sendo transcultural. Infelizmente, Atenas respondeu a Melos:
Essa é uma lei da natureza geral e necessária para governar sempre que possível. Esta não é uma lei que fizemos para nós mesmos, nem fomos os primeiros a agir de acordo com ela quando foi feita. Já a encontramos, e deixaremos que exista para sempre entre aqueles que vierem depois de nós. Estamos apenas agindo assim e sabemos que você ou qualquer outro povo com o mesmo poder que o nosso estaria agindo exatamente da mesma maneira.
No final, os moradores de Melos se recusaram a se submeter a Atenas, e Atenas sitiou a cidade, matou os homens em idade militar e vendeu as mulheres e crianças como escravas.
Os Atenienses violaram alguma lei moral universal, ou “podem decidir o que é correto”? A crença no valor humano ou nos direitos humanos nada mais é do que uma fiação evolutiva que melhora a sobrevivência humana - comparável a dentes, pés ou polegares opostos? Os seres humanos inventam a moralidade - talvez um contrato social - pelo qual concordamos em não prejudicar ou roubar um ao outro? Se existe uma moralidade transcultural, ela pode ser explicada em termos naturais ou sobrenaturais?
Esses são os tipos de perguntas que examinaremos neste breve ensaio. Primeiro, examinaremos a inevitabilidade dos valores morais objetivos. Segundo, abordaremos o contexto dos valores morais objetivos, argumentando que a existência e a natureza de Deus compreendem melhor os valores morais objetivos do que as explicações naturalistas - e outras não-teístas (sejam elas budistas, hindus, xintoístas, etc.). Terceiro, examinaremos as explicações evolutivas e outras explicações subjetivistas da moralidade, que são, em última análise, inadequadas e insatisfatórias. De fato, é necessária a existência de um Deus intrinsecamente bom para fundamentar os valores morais objetivos, bem como os direitos humanos, a dignidade e a responsabilidade moral - características querefletem que Deus nos criou à Sua imagem. Por fim, veremos o dilema de Eutífro, que algumas alegações mostram que, se Deus não é arbitrário em Seus mandamentos, um padrão moral deve existir independentemente de Deus.
A Inescapabilidade dos Valores Morais Objetivos
O filósofo escocês do século XVIII Thomas Reid escreveu sobre a natureza fundamental dos valores morais, como a obrigação de tratar outra pessoa como gostaríamos de ser tratados. Tais leis morais são tão inescapáveis quanto nossa convicção de que existem objetos independentes da mente: “O cético me pergunta: por que você acredita na existência do objeto externo que você percebe? Essa crença, senhor, não é da minha fabricação; ela veio da mente da Natureza; ela traz sua imagem e inscrição; e, se não estiver certo, a culpa não é minha. Eu sempre confiei nela, e sem suspeita.[2]
As Escrituras Judaico-Cristãs assumem que os seres humanos são agentes moralmente responsáveis que geralmente sabem o que é bom e que devem fazer o que é bom e evitar o que é mau. No Antigo Testamento, o profeta Amós (nos capítulos 1–2) envia severas advertências de Deus às nações gentias vizinhas por causa de suas atrocidades e crimes contra a humanidade, pois eles rasgavamos ventres das mulheres grávidas, violavam os tratados, agiam com traição, sufocavam a compaixão. A suposição subjacente é que essas nações, mesmo sem a revelação especial de Deus, deveriam saber agir melhor. Nos escritos do apóstolo Paulo, a mesma suposição é expressa de maneira mais explícita: “Porque, quando os gentios, que não têm lei [de Moisés], fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei; Os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os;” (Romanos 2:14,15).
Assim como confiamos em nossos sentidos e poderes de raciocínio, a menos que tenhamos bons motivos para duvidar deles, também devemos assumir esse "princípio de credulidade" quando se trata também de nosso senso moral básico. Mesmo o cético mais radical reconhece a confiabilidade de seus poderes de raciocínio e a estabilidade das leis fundamentais da lógica para que ele possatirar conclusões céticas com confiança! E simplesmente porque as pessoas podem estar enganadas em suas percepções sensoriais (por exemplo, a percepção incorreta de que um pássaro está no galho, que é de fato movido pelo vento) não é motivo para rejeitar sua confiabilidade geral.
Da mesma forma, embora possamos fazer julgamentos morais defeituosos, ainda existem certas verdades morais inconfundíveis - que podemos ainda não conhecer.[3] Sim, podemos suprimir nossa consciência ou nos envolver em autoengano. No entanto, quando estamos funcionando adequadamente e não estamos sufocando nossa consciência, podemos receber corretamente os fundamentos da moralidade. Como C.S. Lewis mostra em seu livro A Abolição do Homem,[4] pessoas, independentemente do tempo e da cultura, descobriram (não inventaram) os mesmos tipos de padrões morais básicos: não assassine, não tome a propriedade de outra pessoa, não defraude, trate as pessoas como você deseja ser tratado. As pessoas podem saber o certo do errado, a parte da revelação especial de Deus. Como Amós 1–2 e Romanos 2: 14–15 indicam, a retidão das leis morais básicas e a irregularidade de sua violação podem ser conhecidas por qualquer pessoa que não suprima sua consciência ou endureça seu coração.
As pessoas que funcionam adequadamente geralmente sabem quando estão sendo tratadas com crueldade ou como um mero objeto (por exemplo, abuso infantil, estupro, tortura de pessoas inocentes por diversão), e não com dignidade e respeito. De fato, possuímos um "fator nojo" embutido - uma repulsa interna básica em relação à tortura de bebês por diversão e assassinato. Os seres humanos - portadores da imagem de Deus - ainda podem, sem a Bíblia, reconhecer prontamente que a bondade é uma virtude e não um vício, que devemos tratar os outros como gostaríamos de ser tratados e que há uma diferença moral entre Madre Teresa e Pol Pot ou Josef Stalin. Aqueles que não reconhecem o quão básico estas verdades são, estão simplesmente errados; eles não estão funcionando corretamente. A parte e antes de qualquer "contrato social" firmado, podemos intuitivamente reconhecer que todos os seres humanos já possuem certos direitos perante a lei ou que o racismo é imoral. Como Nicholas Rescher observa, se os membros de uma tribo em particular pensam que sacrificar os primogênitos é aceitável, "então a compreensão deles sobre a concepção de moralidade está entre inadequada e inexistente".[5] Essa consciência moral é básica ou "fundamental", como Kai Nielsen coloca:
É mais razoável acreditar que tais coisas elementares [como espancar a esposa e abusar de crianças] sejam más do que acreditar em qualquer teoria cética que nos diga que não podemos saber ou razoavelmente acreditar que alguma dessas coisas sejam más. (...) Acredito firmemente que é fundamental e correto e que qualquer um que não acrediteque esses atos são maus, não pode ter sondado profundamente o suficiente de suas crenças morais.[6]
Apenas conhecemos a retidão das virtudes (bondade, confiabilidade, altruísmo), e o ônus da prova recai sobre aqueles que negam essas coisas. Quando o cético moral diz: "Prove que existem valores morais", ele não precisa de argumento. Ele realmente precisa de ajuda psicológica e espiritual. Existem certas intuições morais que são imediatamente aparentes - a menos que haja algum defeito grave.
O filósofo Robert Audi oferece uma descrição dessas intuições morais. Elas são (1) não-inferenciais ou diretamente apreendidas; (2) firmes (elas devem ser consideradas proposições); (3) compreensíveis (intuições são formadas à luz de uma compreensão adequada de seus objetos proposicionais); (4) pré-teóricas (elas não dependem de teorias, nem são hipóteses teóricas). Tal conhecimento moral emerge não da reflexão sobre princípios abstratos, mas da reflexão sobre casos particulares (particularismo). Além disso, essas intuições não são irrevogáveis. Ou seja, elas podem ser ajustadas ou refinadas à luz de outras considerações ou circunstâncias imperiosas. Por exemplo, manter uma promessa pode ser anulado por circunstâncias que me impedem de cumpri-la, mas ainda tenho o dever de explicar ao meu amigo por que não a cumpri.[7]
Assim, mesmo que os seres humanos façam julgamentos morais defeituosos e possam estar equivocados em alguns momentos, estaríamos errados em abandonar a busca pelo bem ou nos tornar céticos morais: "não podemos sempre ou mesmo geralmente estar totalmente enganados sobre o bem".[8] Como em nossos sentidos ou faculdades racionais, somos sábios em confiar em nossas intuições morais básicas, mesmo que modificações ou reflexões adicionais possam ser necessárias. Assim como ocorre com nossa percepção sensorial e poderes racionais, devemos levar a sério nossas intuições morais, a menos que haja boas razões para duvidar delas.
Naturalismo Versus Teísmo - Qual Se Encaixa Melhor?
O falecido Carl Sagan afirmou com confiança: "O cosmos é tudo o que existe, existiu ou sempre existirá."[9] Certamente, esta é uma afirmação metafísica, uma suposição filosófica, não uma observação científica. Essa afirmação, no entanto, resume muito bem o naturalismo: a natureza é tudo o que existe - o que significa que não há Deus, sobrenatural, milagres ou imortalidade. Quais são as implicações do naturalismo? Elas são realmente fortes. O filósofo Jaegwon Kim admite que o naturalismo é "imperialista; exige 'cobertura total' ... e exige um preço ontológico muito alto".[10] O biólogo E.O. Wilson também sustenta, do ponto de vista naturalista, que toda a realidade “a ideia central da visão de mundo da consiliência é que todos os fenômenos tangíveis, desde o nascimento das estrelas até o funcionamento das instituições sociais, se baseiam em processos materiais que são, em última análise, redutíveis, por mais longas e torturantes que sejam, às leis da física.”[11]
Quais são as implicações para a moralidade, se um Deus pessoal e bom não existe? (Lembre-se de que isso se aplicaria às religiões orientais não-teístas, não apenas ao ateísmo.) Muitos ateus / não-teístas reconhecem que um mundo naturalista não fornece um contexto plausível para os valores morais objetivos (por exemplo, a bondade é virtude, o assassinato é errado) bem como os direitos humanos e a responsabilidade moral. O filósofo Thomas Nagel destaca essas implicações: "Não há espaço para agência [moral] em um mundo de impulsos neurais, reações químicas e movimentos de ossos e músculos". Devido o naturalismo, é difícil não concluir que somos "impotentes" e "não responsáveis" por nossas ações.[12] Da mesma forma, Derk Pereboom afirma que "nossas melhores teorias científicas realmente têm a conseqüência de que não somos moralmente responsáveis por nossas ações,” que somos“mais parecidos com máquinas do que normalmente supomos”.[13] O naturalista Simon Blackburn confessa que prefere dignidade do que a humilhação, mas descobre que a natureza não oferece motivos para afirmar a dignidade humana ou valores morais objetivos:“A natureza não se preocupa com bom ou ruim, certo ou errado. (…) Não podemos nos amparar na ética.”[14] Isso é o que o naturalismo nos leva a esperar –sem nenhum Deus bom, não há nenhum valor moral objetivo. Até o notável ateu de Oxford J.L. Mackie concordou: “As propriedades morais constituem um conjunto tão estranho de propriedades e relações que é mais improvável que tenham surgido no curso normal dos eventos sem um deus todo-poderoso para criá-las.”[15] Mas ele foi adiante e negou que existissem valores morais objetivos!
Sim, muitos naturalistas negam que existam valores morais objetivos - que nosso impulso moral nada mais é do que o produto de um processo evolutivo cego que seleciona traços que melhoram a sobrevivência e a reprodução. Nesse caso, a moralidade é meramente subjetiva. No entanto, os não-teístas podem e endossam os valores morais objetivos - que estupro ou abuso infantil é errado. Esses realistas morais não-teístas nos dirão: "Você não precisa de Deus para ser bom." No entanto, a questão mais profunda é: como chegamos a ser seres moralmente responsáveis, portadores de direitos? Como todos os seres humanos são portadores da imagem de Deus, eles surpreendentemente não reconhecem os mesmos tipos de valores morais que os teístas reconhecem. A questão básica, porém, é a seguinte: por que pensar que os seres humanos têm direitos e dignidade se são produtos de processos físicos sem valor, em uma série de causa e efeito do big bang até agora? O contexto ou cenário mais plausível é que o valor humano e a responsabilidade moral provêm de um Deus bom que nos criou como criaturas intrinsecamente valiosas e moralmente responsáveis. Funcionamos adequadamente quando vivemos moralmente. Vislumbramos algo de um Deus pessoal na ordem moral do mundo: sem um Deus pessoal, nenhum ser pessoal existiria. Se nenhum ser pessoal existir, nenhuma propriedade moral será realizada em nosso mundo. Sabemos que do nada, nadavem (ex nihilo nihil fit); Da mesma forma, da falta de valor, vem a falta de valor. É extremamente difícil ver como passamos de uma série sem valor de causas e efeitos do big bang em diante, chegando finalmente a sermos seres humanos valiosos, moralmente responsáveis e com direitos. Se somos apenas seres materiais produzidos por um universo material, então o valor objetivo ou a bondade não podem ser considerados(para não mencionar a consciência ou os poderes de raciocínio, a beleza ou a personalidade). Em vão, procurar-se-á qualquer livro didático de física que descreva o valor moral como uma das propriedades da matéria! Talvez não se deva realmente se surpreender quando os ateus acreditam que os valores morais podem emergir da matéria sem valor. Afinal, eles tendem a acreditar que o universo finito, milimetricamente ajustado, produtor de vida, produtor de consciência e produtor de valor poderia emergir literalmente do nada!
Poderíamos pressionar ainda mais. Em nome da simplicidade, parece não haver boas razões para que os naturalistas invoquem qualquer esfera moral independente. Isso pareceria totalmente supérfluo e completamente fora de contexto, devido as nossas origens sem valor, segundo o naturalismo. São os não-teístas que dizem que o valor moral “assassinato é errado” seriam verdadeiros, mesmo que Deus não existisse, assumindo que tais valores morais são apenas “fatos brutos”.[16] Mas é difícil ver como o amor ou a própria justiça poderiam existir, digamos: durante o período Jurássico. Sem Deus, as propriedades morais não seriam realizadas ou atualizadas neste mundo na forma de direitos humanos, dignidade ou deveres morais: sem Deus, não há nenhum valor moral. Desde que nossa personalidade está enraizada em um Deus pessoal que nos cria especialmente, existe uma profunda conexão entre a personalidade e os valores morais objetivos.[17]
Mais uma vez, tanto os ateus, quanto os crentes, podem saber o que é bom. E porque? Somos todos seres feitos à imagem de Deus. Quem somos nos permite diferenciar o certo do errado. Este ponto também se aplica aos religiosos não-teístas - não apenas a naturalistas ateus. Os Jainistas não-teístas, por exemplo, acreditam que a alma (jiva) em cada criatura implica a não-violência estrita(ahimsa). Eles consideram que esse valor seja um bruto simples. No entanto, qual é a base de qualquer valor neste mundo finito se Deus não existe?
Além disso, se a natureza é tudo o que existe, como passamos do modo como as coisas são (o descritivo) para o modo como as coisas devem ser (o prescritivo)? Por que trazer explicações morais quando descrições científicas são tudo o que o naturalismo requer? As categorias morais podem ser eliminadas em nome da simplicidade científica. Em vez de dizer: “Hitler matou milhões de Judeus porque ele era moralmente depravado”, talvez possamos usar uma explicação “científica” não moral: “Hitler era amargo e iracundo. Ele acreditava erroneamente que os Judeus eram responsáveis pela derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Seu ódio pelos Judeus ajudou a liberar sua hostilidade e raiva reprimidas, e suas crenças morais não restringiram sua expressão de ódio.”[18] Em um universo material de origens irracionais e sem valor, explicações científicas são tudo o que precisamos; as explicações morais são supérfluas.
Outro problema ao assumir valores morais como fatos brutos inexplicáveis é o seguinte: uma enorme coincidência cósmica existiria entre (a) esses fatos morais e (b) o eventual desenvolvimento evolutivo e altamente contingente de seres auto-reflexivos e moralmente responsáveis que podem realmente reconhecer que existem obrigações morais. Essa conexão evoca uma explicação. Parece que essaesfera de fatos morais estava antecipando nossa emergência - uma coincidência cósmica impressionante! Mesmo que um padrão moral exista independentemente de Deus, ainda resta a questão de como os seres moralmente valiosos e responsáveis poderiam emergir da matéria sem valor. A existência de um Deus bom e pessoal, que criou os seres humanos à sua imagem, oferece uma conexão mais simples e menos artificial, um contexto mais plausível para afirmar o valor e os direitos humanos, bem como as obrigações morais.
A Questão da Ética Evolutiva
Não é difícil encontrar naturalistas que consideram a ética nada mais que uma invenção humana ou uma adaptação biológica que serve apenas como um instrumento para nossa sobrevivência e reprodução. Bertrand Russell afirmou que "toda a questão da ética surge da pressão da comunidade sobre o indivíduo".[19] De acordo com Michael Ruse e E.O. Wilson, "a ética como a entendemos é uma ilusão que nos é impingida por nossos genes para que faça-nos cooperar.”[20] Em outro lugar, Ruse afirma que a moralidade é o“produto efêmero”da evolução - junto com nossas mãos, pés e dentes. A moralidade é simplesmente "um auxílio à sobrevivência e à reprodução, e não existe nada além disso".[21] A moralidade tem valor biológico –e isso é tudo. O filósofo naturalista Jonathan Glover acredita que estamos atualmente em uma crise moral. Devido os horrores éticos do século XX, ele sugere que a moralidade possa sobreviver "quando vista como uma criação humana".[22] Portanto, ele aconselha os seres humanos a "recriar a ética", programando as gerações futuras a sentirem repulsa pelo genocídio e campos de concentração.[23]
De acordo com muitos naturalistas, perguntar por que devemos ser morais é como perguntar por que devemos nos coçar ou ter fome.[24] Estamos simplesmente evolutivamente implementados com características adaptativas que permitem a sobrevivência e a reprodução. A moralidade é uma dessas características - como nossos membros ou dentes. Enfrentamos o problema do é-deve ser novamente: como passamos do é da natureza e da ciência para o dever da obrigação e valor moral. Se nossa moralidade é simplesmente evoluída, tudo o que podemos fazer é descrever como os seres humanos realmente funcionam; não podemos prescrever como os humanos devem se comportar. Não há diferença entre se devo ser moral e se devo ter fome, já que ambas são funções de conexão evolutiva. Esses estados simplesmente são. O naturalismo, em última análise, pode nos dar uma descrição do comportamento humano e da psicologia, mas não pode fundamentar uma obrigação moral genuína. As obrigações morais em um mundo de descrições científicas naturalistas são realmente estranhas. No entanto, elas se encaixam bemem um mundo teísta.
Também enfrentamos a questão de por que deveríamos confiar em nossas conclusões sobre a verdade (ou moralidade) se um Criador verdadeiro não existe? Se somos biologicamente implementados para formar crenças morais que contribuem para nossa sobrevivência e reprodução, então essas crenças são simplesmente o que são. Não podemos ter confiança de que elas são verdadeiras: podemos confiar em nossas mentes se somos apenas produtos da evolução naturalista tentando lutar, alimentar, fugir e se reproduzir? O próprio Darwin ficou profundamente perturbado com isso: “Sempre surge a terrível dúvida de que as convicções da mente do homem, que foram desenvolvidas a partir da mente dos animais inferiores, têm algum valor ou são totalmente confiáveis. Alguém confiaria nas convicções da mente de um macaco, se existem quaisquer convicções em tal mente?”[25]
A evolução naturalista está interessada em adaptação e sobrevivência - não em crenças verdadeiras. A moralidade então é apenas uma adaptação biológica - como o pelo grosso do urso polar: o pelo grosso não é mais verdadeiro que o pelo fino; apenas capacita melhor a sobrevivência.
Portanto, não apenas a moralidade objetiva é prejudicada se o naturalismo é verdadeiro; o mesmo acontece com o pensamento racional. Nossas crenças podem nos ajudar a sobreviver, mas não há razão para pensar que são verdadeiras. Portanto, podemos acreditar firmemente que os seres humanos são intrinsecamente valiosos ou que temos obrigações morais ou que temos livre-arbítrio e que nossas escolhas são realmente importantes. Esse conjunto de crenças pode ajudar a espécie homo sapiens a sobreviver, mas pode ser completamente falso. Portanto, se somos implementados cegamente pela natureza para formar certas crenças por causa de seu valor de melhoria na sobrevivência, então não podemos ter confiança sobre o status de verdade dessas crenças.
Mais uma vez, a existência de um Deus bom e verdadeiro oferece uma saída: dependemos de nossas faculdades racionais na busca da verdade. Confiamos em nossas percepções sensoriais como basicamente confiáveis; e tendemos a assumir que nossas intuições morais gerais são confiáveis. Uma cosmovisão bíblica inspira confiança de que podemos conhecer as verdades morais e racionais, mesmo que elas não contribuam para a nossa sobrevivência. Como portadores da imagem de Deus, fomos projetados para buscar e encontrar a verdade. Mas se somos implementados naturalmente para reproduzir e sobreviver, então não podemos confiar nessas faculdades. Como já observamos, o escândalo desse ceticismo é o seguinte: estamos confiando nas próprias faculdades cognitivas cuja falta de confiabilidade é a conclusão do meu argumento cético; isto é, estou assumindo um processo de raciocínio confiável para chegar à conclusão de que não posso confiar no meu raciocínio! Um contexto não-teísta não inspira confiança em nossos mecanismos de formação de crenças.
O Dilema de Eutífron
No diálogo Eutífron de Platão (10a), Sócrates pergunta: "O que é santo é santo porque os deuses o aprovam, ou eles o aprovam porque é santo?"[26] Os céticos gostam de levantar esse dilema: ou (a) os mandamentos de Deus são arbitrários (algo é bom porque Deus manda - e ele poderia ter ordenado: "Você deve matar / cometer adultério"), ou (b) deve haver algum padrão moral autônomo (que Deus consulta para ordenar)?[27] Ficamos com o "capricho" divino, como sugeriu Bertrand Russell?[28] Ou temos um padrão moral completamente independente de Deus? O crítico Robin Le Poidevin declara que “aparentemente podemos entender apenas essas doutrinas [de que Deus é bom e deseja que façamos o que é bom] se pensarmos que a bondade é definida independentemente de Deus”.[29]
Esse dilema, em última análise, deriva de uma confusão de conhecer e ser. Os não-teístas podem conhecer o que é moral, mas a questão é como eles vieram a ser assim. O dilema é finalmente resolvido ao enraizar os valores morais objetivos no caráter não arbitrário e essencialmente bom de Deus que nos criou à Sua imagem. Não conheceríamos a bondade sem que Deus nos desse uma constituição moral. Temos direitos, dignidade, liberdade e responsabilidade porque Deus nos projetou dessa maneira. Nisto, refletimos a bondade moral de Deus como portadores de Sua imagem.
Também devemos refletir sobre esses pontos adicionais. Primeiro, se os naturalistas estão corretos, eles mesmos não podem escapar de um dilema semelhante: esses valores morais são bons simplesmente porque são bons, ou existe um padrão independente de bondade ao qual eles se adaptam? O argumento do realismo moral naturalista não oferece nenhuma vantagem real. Segundo, a pergunta do naturalista é inútil, pois devemos chegar a algum ponto de parada auto-suficiente e auto-explicativo além do qual a discussão não pode ir além. Terceiro, Deus, que é essencialmente perfeito, não tem obrigações com algum padrão moral externo; Deus simplesmente age, e é bom. Ele naturalmente faz o que é bom. Quarto, a ideia de que Deus poderia ser mau ou ordenar o mal é totalmente contrária à própria definição de Deus; caso contrário, tal ser não seria Deus e não seria digno de adoração. A aceitação de valores objetivos pressupõe uma espécie de objetivo final ou plano de design cósmico para os seres humanos, o que não faria sentido dado o naturalismo; tal orientação para objetivos faz muito sentido, dado o teísmo (que pressupõe um plano de design, que favorece o teísmo sobre o naturalismo).
Por uma questão de argumento, mesmo que existisse algum padrão moral independente, isso dificilmente tornaria Deus desnecessário ou sem importância. Afinal, por que pensar que os seres humanos - dadas suas origens materialistas, não guiadas e sem valor - evoluíram para pessoas moralmente valiosas, com direitos e moralmente responsáveis, que têm o dever vinculado a esse padrão? Mesmo que o dilema de Eutífro tivesse algum impacto, ainda assim não mostraria por que deveriam surgir pessoas intrinsecamente valiosas e portadoras de direitos que têm o dever vinculado a algum padrão moral eternamente preexistente. Mais uma vez, Deus faz um sentido muito melhor disso.
Alegações Finais
O argumento moral para a existência de Deus é vital de duas maneiras importantes. Primeiro, a questão da moralidade atinge o coração de quem somos como seres humanos. Nós falhamos moralmente; não somos o que sabemos que deveríamos ser. Felizmente, reconhecer que estamos aquém de um padrão moral pode nos apontar na direção de Deus e de Sua graça. Como então lidamos com nossa deficiência moral, culpa e vergonha? Observe a “lacuna moral” que existe entre (a) nosso reconhecimento de valores e ideais morais básicos que sabemos que devemos viver e (b) nossa falha moral em viver de acordo com esses ideais. Essa lacuna serve para nos lembrar da necessidade de (c) a graça divina que nos permita viver como deveríamos - graça que pode ser encontrada na obra expiatória de Cristo e no dom do Espírito Santo que nos permite viver vidas agradáveis para Deus. Então, ao invés de pensar que "deverimplica poder", como sugeriu Kant, nós, seres humanos que falham, podemos reconhecer nossa necessidade e nos lançarmos na misericórdia e graça de Deusprontamente disponíveis. Portanto, um entendimento mais bíblico nos leva a concluir: “Dever implica poder - com a assistência divina”.[30]
Segundo, o argumento moral tem essa importante vantagem: ele oferece uma resposta pronta para o que o filósofo John Rist chama de “crise no debate ocidental contemporâneo sobre os fundamentos éticos” amplamente admitido.[31] Levar a sério um Deus e Criador pessoal, o bem e a fonte infinita de todos os bens finitos - incluindo a dignidade humana - ajuda a fornecer a base metafísica necessária para os direitos humanos e valores morais objetivos. À parte dessa posição, parece que a crise se tornará apenas mais pronunciada. No entando, se existem valores morais objetivos e se os seres humanos têm direitos e dignidade, temos boas razões para crer em Deus. Além disso, um argumento moral bem-sucedido, embora aprimorado pela doutrina da Trindade mutuamente amorosa, pode nos indicar a necessidade da graça e perdão divinos por meio de Cristo; este argumento pode nos levar a refletir sobre nossa situação moral e espiritual e, em espírito de oração, buscar assistência por meio de revelações mais específicas sobre Deus. Dito isto, o argumento moral nos aponta para um Ser moral pessoal supremo (1) que é digno de adoração, (2) que nos fez com dignidade e valor, (3) a quem somos pessoalmente responsáveis e (4) que pode razoavelmente ser chamados de "Deus".
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Fonte:
COPAN, Paul. The Moral Argument.In COPAN, Paul; CRAIG, William Lane (General Editors). Passionate Conviction: Contemporary Discourses on Christian Apologetics. Nashville, Tennessee: B&H ACADEMIC, 2007.
Tradução Walson Sales.
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Notas:
[1]Citaçõesdesterelatosão de Jonathan Glover, Humanity: A Moral History of the Twentieth Century (London: Jonathan Cape, 1999), 28—30.
[2]EmThomas Reid's Inquiry and Essays, ed. Keith Lehrer and Ronald E. Beanblossom (Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1975), 84-85.
[3]VejaJ. Budziszewski, What We Can't Not Know (Dallas: Spence, 2003).
[4] C. S. Lewis, The Abolition of Man (San Francisco: Harper, 2001), appendix.
[5] Nicholas Rescher, Moral Absolutes: An Essay on the Nature and Rationale of Morality, Studies in Moral Philosophy, vol. 2 (New York: Peter Lang, 1989), 43.
[6] Kai Nielsen, Ethics without God, rev. ed. (Buffalo, N.Y.: Prometheus Books, 1990), 10-11.
[7] Robert Audi, Moral Knowledge and Ethical Character (New York: Oxford University Press, 1997), 32-65.
[8] Robert M. Adams, Finite and Infinite Goods: A Framework for Ethics (Oxford: Oxford University Press, 1999), 20.
[9] Carl Sagan, Cosmos (New York: Random House, 1980), 4.
[10]Jaegwon Kim, “Mental Causation and Two Conceptions of Mental Properties.” Palestra apresentada no the American Philosophical Association Eastern Division Meeting (December 1993), 2-23.
[11] Edward O. Wilson, Consilience: The Unity of Knowledge (New York: Knopf, 1998), 266.
[12] Thomas Nagel, The View from Nowhere (New York: Oxford University Press, 1986), 111, 113.
[13]DerkPereboom, Living without Free Will (Cambridge: Cambridge University Press, 2001), xiii—xiv.
[14] Simon Blackburn, Being Good: A Short Introduction to Ethics (New York: Oxford University Press, 2001), 133-34.
[15] J. L. Mackie, The Miracle of Theism (Oxford: Clarendon, 1982), 115.
[16] E.g., Russ Shafer-Landau, Moral Realism: A Defence (New York: Oxford University Press, 2005).
[17]A necessidade de verdades morais não torna Deus irrelevante; essas verdades ainda exigem fundamentação no bom caráter pessoal de Deus: Ele necessariamente existe em todos os mundos possíveis, é a fonte de todas as verdades morais necessárias e é explicitamente anterior - mais básico - a esses valores morais. Esses valores morais permaneceriam em relação assimétrica à Sua necessidade - como um pêndulo, cujo período (balanço completo) pode ser deduzido do comprimento do pêndulo, mas não vice-versa (isto é, o comprimento do pêndulo explica seu período, não o inverso). William E. Mann, "Necessity", emCompanion to Philosophy of Religion, ed. William Quinn e Charles Taliaferro (Malden, Mass.: Blackwell, 1997). A necessidade de princípios morais não significa que eles sejam analíticos. Por exemplo, “água é H2O” é uma verdade necessária, mas certamente não é analítica. Como argumentou Saul Kripke, há uma necessidade metafísica que, neste caso, é descoberta a posteriori. E, mais ao ponto, “o fato de que a água é necessariamente H2O de maneira alguma exclui a necessidade de uma explicação para a existência ou estrutura da água” (367). Veja C. Stephen Evans, "Moral Arguments", emCompanion to Philosophy of Religion, 346-47.
[18] T. L. Carson, Value and the Good Life (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2000), 194.
[19] Bertrand Russell, Human Society in Ethics and Politics (London: Allen & Unwin, 1954), 124.
[20] Michael Ruse and E. O. Wilson, “The Evolution of Ethics,” New Scientist 17 (1989): 51.
[21] Michael Ruse, The Darwinian Paradigm (London: Routledge, 1989), 268.
[22] Glover, Humanity, 41.
[23] Ibid., 42.
[24] Michael Shermer, The Science of Good and Evil: Why People Cheat, Gossip, Care, Share, and Follow the Golden Rule (New York: Henry Holt, 2004), 57.
[25]Carta a W. G. Down, 3 July 1881, emThe Life and Letters of Charles Darwin Including an Autobiographical Chapter, ed. Francis Darwin (London: John Murray, 1887), 1:315—16.
[26] Plato, “Euthyphro,” trans. Lane Cooper, in The Collected Dialogues of Plato, ed. Edith Hamilton and Huntington Cairns (Princeton: Princeton University Press, 1961), 178.
[27]Estes termossãotirados de Mark D. Linville, “On Goodness: Human and Divine,” American Philosophical Quarterly 27 (April 1990): 143-52.
[28] Bertrand Russell, Human Society in Ethics and Politics (New York: Simon & Schuster, 1962), 38.
[29] Robin Le Poidevin, Arguing for Atheism (London: Routledge, 1996), 85.
[30] John Hare, The Moral Gap: Kantian Ethics, Human Limits, and God's Assistance (Oxford: Clarendon, 1996).
[31] John Rist, Real Ethics (Cambridge: Cambridge University Press, 2001), 1.

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