sábado, 4 de julho de 2020

A Coerência do Teísmo


Por Charles Taliaferro e Elsa J. Marty

[Capítulotreze do livro: Contending with Christianity’s Critics: Answering New Atheists & Other Objectors, editadopor Paul Copan e William Lane Craig]

Obs.: “Traduzindo trechos e buscando editoras interessadas na publicação”.*
*Este trabalho/projeto descrito acima, visa fazer uma divulgação das obras importantes sobre temas atuais e relevantes e tentar despertar o interesse das Editoras do Brasil.Aproveite a leitura e ore para que esta obra seja publicada no Brasil.

Os filósofos há muito se preocupam com a coerência do conceito de Deus. As apostas são altas. Filósofos ateus da Grécia antiga em diante procuraram mostrar que a ideia de Deus ou deuses não faz sentido. Outros filósofos descobriram que o conceito de Deus ou deuses é extremamente inteligível. Deus tem sido descrito como o ser mais real (ens realissimum), e alguns filósofos (começando com Anselmo de Cantuária no século XII) argumentaram que, se a ideia de Deus é coerente, podemos argumentar legitimamente, através de premissas lógicas, que Deus realmente existe. Há uma longa história de debate filosófico sobre o conceito de Deus, que foi bem pensado e elaborado ao longo do tempo. Como o filósofo do século XVII Henry More observou certa vez, a ideia de Deus está repleta de ricas possibilidades e virtudes.
No entanto, o Novo Ateísmo, um movimento liderado por pessoas como Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris e Christopher Hitchens, trata o conceito de Deus como uma hipótese mal concebida, baseada, segundo eles, no medo, ignorância e desejo. Freqüentemente hostis e militantes em seus ataques, eles não conseguem compreender como uma pessoa inteligente poderia acreditar na existência de Deus. No entanto, suas representações do teísmo são, em nossa opinião, caricaturas simplórias. É como se eles tivessem esquecido completamente os milênios de reflexão filosófica sincera, dedicada e significativa sobre o conceito de Deus. No livroThe God Delusion, por exemplo, Richard Dawkins descreve "a Hipótese de Deus" como a tese de que "existe uma inteligência sobre-humana e sobrenatural que deliberadamente projetou e criou o universo e tudo nele, inclusive nós". Mais adiante, no livro, ele afirma que “A bondade não faz parte da definição da Hipótese de que Deus Existe, ela não passa de um acessório desejável..”[1] Além da estipulação absurda de Dawkins de que o conceito de Deus é o conceito de um “sobre-humano” (como se Deus fosse algum tipo de Homo sapiens gigante), a ideia de que a bondade é um mero “acessório” em relação a Deus erra totalmente toda a ideia central de Deus. Mais fundamentalmente, o conceito de Deus faz parte de uma realidade que merece nosso mais alto louvor e fé mais profunda.
Os filósofos trabalharam duro para refinar o conceito de Deus como um ser insuperavelmente bom e digno de louvor, porque essa é a chave para reconhecer os atributos que fazem Deus ser Deus: existência necessária ou não derivada de Deus, incorporalidade, onipotência, bondade essencial, onisciência, onipresença e eternidade. Cada atributo aprimora os outros. Considere a onipotência sem a onisciência. Indiscutivelmente, um ser sem onisciência teria menos poder do que um ser com onisciência. Os atributos de Deus não são, portanto, uma colcha de retalhos de características arbitrárias. Cada atributo está, portanto, interconectado, e juntos eles formam um todo coerente. Apreciar este aspecto ajuda a evitar a representação grosseira de Deus que se encontra na obra de Dawkins. A concepção de Dawkins da bondade como um mero acessório mostra o fracasso dos Novos Ateus em compreender o conceito de teísmo. Os filósofos não escolhem arbitrariamente quais atributos eles gostariam que Deus tivesse. O teísmo faz sentido como um todo coerente; não se adiciona e subtrai aspectos de Deus à vontade.
Neste capítulo, procuramos defender a coerência do conceito de Deus. Começamos com uma breve palavra sobre como discernir coerência nos argumentos a respeito do teísmo e prosseguimos delineando seis atributos ou propriedades divinas envolvidos no conceito de Deus: existência necessária, incorpórea, bondade essencial, onipotência, onisciência e eternidade. Com relação a cada um, oferecemos uma breve descrição de pelo menos um desafio cético e uma resposta. Concluímos com reflexões sobre o que pode ser chamado de flexibilidade do teísmo.
Nós, autores, viemos da tradição Cristã e entendemos Deus à luz de Jesus Cristo. Os atributos divinos inerentes ao conceito de Deus são geralmente aceitos por teístas de outras tradições religiosas. Nosso objetivo neste ensaio é simplesmente defender do ponto de vista filosófico da coerência do teísmo e, assim, defender a coerência de um conceito que é central para as tradições Cristãs e outras tradições teístas. Ensinamentos Cristãos específicos sobre Deus como Triuno e Deus encarnado enriquecem ainda mais a filosofia sobre Deus muito além do que pode ser um teísmo geral, e comentamos isso no final de nosso capítulo.

Um Método Coerente Para Reconhecer Conceitos Coerentes

O conceito de um ser ou estado de coisas é coerente se for possível que o ser ou estado de coisas exista ou se obtenha. Se o conceito de Deus é coerente, por exemplo, é possível que Deus exista. Determinar a coerência de uma ideia religiosa central como Deus não é o mesmo, porém, como determinar a coerência ou incoerência de alguma proposição ou ideia teórica ou matemática. Teoria dos números e consistência lógica podem ser tudo o que é necessário para determinar a coerência de algum teorema. No entanto, com relação a certas afirmações mais metafísicas, como a afirmação de que as pessoas podem sobreviver à morte de seus corpos, será necessária mais do que consistência lógica; precisaremos testar conceitos relevantes, como ser uma pessoa, ter um corpo e identidade pessoal. Envolvendo-nos em várias experiências de pensamento nas quais tentamos imaginar (imaginar, descrever, conceber) pessoas sem corpos, chegamos a ver que esse estado de coisas não é uma possibilidade de bona fide. Ao pensar sobre o teísmo, precisaremos não apenas de consistência lógica, clareza e poderes de imaginação, mas também de um sólido senso de valores. Isso virá à tona quando discutirmos os atributos divinos de poder, conhecimento e bondade essencial abaixo. Também usaremos um insight importante das pensadoras feministas para refinar a filosofia do poder em ação no conceito de onipotência.
De todos os valores que seria útil observar no início de nossa investigação, provavelmente o mais importante é a humildade. Quando se trata do conceito de Deus na tradição teísta, estamos nos aproximando do conceito de um ser que é imanente e transcendente. Acredita-se que Deus seja imanente na medida em que Deus é o Criadoronipresente, sem cujo poder contínuo de sustentação causal o cosmos não existiria. Mas acredita-se que Deus seja transcendente no sentido de que Deus é mais do que somos capazes de compreender. Em teologia, as declarações positivas que podemos fazer sobre Deus fazem parte do que é conhecido como teologia catafática ou a via positiva (o caminho positivo), enquanto a negação de que podemos compreender completamente o divino faz parte da teologia apofática ou da via negativa (o caminho negativo). No que vem a seguir, estamos envolvidos na via positiva; mas, embora defendamos a inteligibilidade do conceito de Deus como necessariamente existente e assim por diante, também queremos reconhecer no final que (se o teísmo estiver certo), Deus é mais do que podemos compreender plenamente. E isso exige uma sensação de humildade, não decorrente do que os Novos Ateus consideram medo infantil ou amor ao mistério, mas de uma sensação da natureza esmagadora e impressionante de Deus.
Vamos agora explorar um conjunto de atributos divinos e considerar a razão a favor ou contra sua coerência.

Existência Necessária

Os filósofos da tradição Islâmica estão especialmente comprometidos em articular a tese de que a existência de Deus é o conceito de uma realidade que não é contingente. Uma maneira de eles (e mais tarde, os pensadores Cristãos) expressarem o conceito é alegando que a essência de Deus (o que é ser Deus) contém existência. Com relação a tudo o mais neste mundo, a essência (o que é uma coisa) é distinta da existência (o fato de uma coisa existir ou não existir). Havia um tempo em que os cavalos não existiam e um dia os cavalos provavelmente deixarão de existir. (Os astrofísicos conjecturam que, quando o sol consumir todo o seu hidrogênio daqui a quatro bilhões de anos, a Terra se converterá em vapor.)
No entanto, o conceito de Deus não é contingente porque (se existe um Deus), Deus nunca começou a existir, nem Deus pode deixar de existir. A essência de Deus é existência. Ser Deus é existir. Perguntar por que Deus existe seria como perguntar: "Por que vermelho é vermelho?" A cor vermelha é simplesmente vermelha. A vermelhidade do vermelho é simplesmente uma questão da lei da identidade: A é A, ou tudo é ele mesmo. Da mesma forma, se existe um Deus, existe um ser cuja realidade não é derivada de outra força (um super Deus) e cuja inexistência é implausível.
Dawkins reclamou que se os teístas têm permissão para postular a existência necessária de Deus, então ele deve ser permitido postular a existência necessária do cosmos. Existem dois problemas com isso. Primeiro, os teístas não começam com algum conceito arbitrário x e depois acrescentam a existência necessária. O raciocínio dos teístas é que a existência necessária faz parte da existência de Deus. Se alguém informasse: “Oh, Deus existia ao meio-dia de hoje e depois pereceu às 14:00”, normalmente pensamos que a pessoa está brincando. O conceito de Deus simplesmente é o conceito de um ser que não pode ser vulnerável à inexistência. Segundo, não parece haver nada no cosmos ou sobre o cosmos que envolva a existência necessária. O fato de que a ciência deve observar o mundo para explicá-lo é evidência de que o mundo poderia ter sido diferente. O conceito de cosmos é contingente; várias teorias científicas que explicam como o mundo funciona podem ter necessidade condicional (um quark deve ter uma certa carga elétrica, dadas as leis vigentes da física), mas nada no ou sobre o cosmos é essencialmente necessariamente existente, nem as próprias leis da física são necessárias. Existem leis atuais de conservação de energia, mas nenhuma delas fornece qualquer razão para pensar que a própria energia existe necessariamente. A mera resistência de alguma força ou evento ao longo do tempo, mesmo que seja sem começo, não constitui em si mesma uma existência necessária.
No entanto, considere a seguinte objeção. Não podemos conceber um cosmos sem Deus? Nesse caso, parece que é possível que Deus não exista. Se é possível que Deus não exista, então a existência de Deus não é necessária.
Resposta: Conceber a inexistência de Deus é mais difícil do que pode parecer à primeira vista. Posso conceber um cosmos sem conceber a verdade de que 1 + 1 = 2, mas não se segue necessariamente que estou concebendo um cosmos no qual 1 + 1 não é igual a 2. Se alguém pode ver que a existência de Deus é impossível, Como se pode ver que 1 + 1 ≠ 3, não há problema em compreender a possibilidade de Deus não existir. Mas, fora o argumento de que a existência de Deus pode ser considerada impossível, o opositor precisaria fazer duas coisas: (1) conceber a Deus e (2) conceber que Deus não existe. Sugerimos que isso é difícil porque (por definição), o reconhecimento da existência de Deus é necessário para conceber a inexistência de Deus. Conceber a inexistência de Deus sem conceber Deus seria como conceber água sem hidrogênio ou oxigênio. Você pode pensar que poderia ter água escorrendo em um recipiente enquanto cientistas inteligentes renomearem todos os átomos de oxigênio e hidrogênio, mas como a água é H2O, essa não é uma possibilidade bona fide. A existência de Deus, diferente da existência do cosmos, é necessária.

Incorporalidade

Às vezes, Deus é retratado nas Escrituras das tradições monoteístas em termos de uma encarnação material: Adão e Eva “ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim pela viração do dia” (Gn 3: 8).[2] Mas praticamente todos os teístas filosóficos interpretam essas passagens como metáforas para descrever Deus, que é uma realidade não-física - um ser não idêntico a nenhum objeto material. "Deus é espírito" (João 4:24). Os Cristãos tradicionais creem que Deus se encarnou (em um corpo físico), mas isso não é o mesmo que acreditar que Deus está sendo transformado em um objeto corpóreo. (O problema de pensar que Deus se tornou um objeto físico é que a identidade é estrita e simétrica. Se A é idêntico a B, então B é idêntico a A. Se Deus é idêntico a um corpo físico no primeiro século, então Deus sempre foi idêntico àquele corpo, o que significa, absurdamente, que esse corpo sempre existiu.Por essa razão, os Cristãos tradicionais veem Jesus como Deus encarnado ou - literalmente - corporificado e, nesse sentido, totalmente humano ao invés de sustentar que Deus se tornou numericamente idêntico a um corpo animal.)[3]
Alguns filósofos argumentaram que só poderia haver um deus poderoso, conhecedor e bom se esse ser tivesse um corpo como Zeus ou Thor, porque um agente incorpóreo é uma contradição de termos. Todas as ideias coerentes sobre agentes não requerem seres corporificados e materiais?
A dificuldade com essa objeção é que não parece haver nada sobre ser um agente (um sujeito que intencionalmente provoca eventos) que ipso facto requer qualquer tipo de corpo. Os agentes não são necessariamente físicos ou corporificados. Mesmo se nós humanos somos essencialmente corporificados (não podemos existir sem nossos corpos), não se segue que todo ser concebível (ou inconcebível) seja corpóreo.
Além disso, mesmo no nosso caso, é difícil estabelecer que nosso poder de agência (nosso desejo e capacidade de provocar algum evento) seja ele próprio físico. Podemos observar o que acontece no cérebro quando uma pessoa deseja pensar em matemática, mas sem dúvida isso não é observar o desejo da pessoa de pensar em matemática. A ciência cerebral contemporânea não demonstrou como nossa experiência subjetiva (nosso pensamento, sensação e emoções) pode ser a mesma coisa que nossos processos cerebrais. Há boas evidências de correlação, mas correlação não é identidade. E mesmo que nossos estados e atividades mentais sejam as mesmas que nossas atividades cerebrais, isso não descarta a possibilidade de outros agentes serem agentes incorpóreos.
Alguns filósofos se opõem ainda ao conceito de um agente incorpóreo, alegando que qualquer explicação dos eventos por um agente desse tipo seria vazia ou sem significado devido à sua incapacidade de ser sujeita a observação ou explicação científica. Matthew Bagger, um dos Novos Ateus e professor de religião da Universidade Brown, argumenta que simplesmente não podemos jamais recorrer a relatos teístas:
Nunca podemos afirmar que, em princípio, um evento resiste a explicações naturalistas. Um evento anômalo perfeitamente substanciado, em vez de fornecer evidências para o sobrenatural, apenas põe em questão nossa compreensão das leis naturais particulares. Na era moderna, essa posição representa com bastante precisão a resposta educada à novidade. Em vez de invocar o sobrenatural, sempre podemos ajustar nosso conhecimento do natural em casos extremos. Na era moderna da investigação real, nunca chegamos ao ponto em que levantamos as mãos e apelamos à intervenção divina para explicar um evento localizado como uma experiência extraordinária.[4]
Bagger apela ao que nós modernos assumimos em todos os outros contextos de explicação, e nenhum deles parece permitir um apelo a Deus (ou o que Bagger chama de "o sobrenatural"). Jan Narveson, um filósofo Canadense, oferece um ataque mais direto e contundente às explicações teístas, que ele vê como vazias de conteúdo. Nós o citamos longamente:
Deveria ser considerado como um grande embaraço para a teologia natural que a própria ideia de algo como um universo ser "criado" por algum ser mental seja suficientemente incompreensível para que qualquer tentativa de fornecer uma descrição detalhada de como isso pode ser feito seja limitada a provavelmente parecer uma versão boba, mítica ou vagamente antropomorfizada de algum processo físico familiar.
Não é nenhuma surpresa que os detalhes sobre como tudo isso [criação] supostamente aconteceu estejam totalmente ausentes, quando não são, como eu digo, relatos bobos ou simplesmente poéticos. A ideia fundamental é que uma mente infinitamente poderosa simplesmente desejasse que fosse assim, e, como eles dizem, Olhem!, Foi assim! ... "Como devemos conhecer os caminhos do Deus infinito e todo-poderoso?" é perguntado - como se esse comentário fosse um substituto decente para uma resposta. Mas é claro que não é. Se levamos a sério a "teologia natural", devemos estar prontos para fornecer conteúdo em nossa explicação das hipóteses teológicas, assim como fazemos quando explicamos hipóteses científicas. Tais explicações carregam o peso dos esclarecimentos. Por que a água ferve quando aquecida? A história científica fornece uma análise da matéria em seu estado líquido, os efeitos da pressão atmosférica e do calor, e assim por diante até vermos, em detalhes impressionantes, exatamente como a coisa funciona. O direito de uma explicação de ser chamada de "científica" é, de fato, em parte consideradapor ter conquistado precisamente por sua capacidade de fornecer esses detalhes.[5]
Se Narveson e Bagger estão corretos, uma explicação teísta do cosmos não é uma opção válida.
Contra Narveson e Bagger, pode-se responder que existem dois tipos gerais de explicações para eventos: relatos intencionais (que invocam valores, projetos, propósitos) e relatos não intencionais (que não possuem valores, projetos e propósitos). Assim, por exemplo, relatos científicos de calor, luz, gravidade e ligações químicas consistem em explicações causais não intencionais. Um relato da velocidade da luz não contém recurso ao desejo, propósito ou valor. Explicações intencionais são essenciais, no entanto, se alguém quiser explicar nossa escrita e sua leitura deste livro. Alguns eliminativistas (materialistas que evitam apelos a atividades mentais) propuseram que todas as explicações devem (no final) evitar a intencionalidade, mas devemos assumir (como a maioria dos filósofos hoje defende) que um relato de sua leitura deste livro deve incluir algumas crenças, desejos e intenções (uma curiosidade sobre a religião, um desejo de pensar de forma crítica sobre ela e assim por diante).
Se existem explicações intencionais, deve haver o que alguns filósofos chamam de ações básicas. Esses são atos que se praticam por razões, mas se praticam diretamente e sem a mediação de outros atos. Você pode fazer uma coisa (chamar a atenção de seu amigo) fazendo outra (ligando pra ele), mas alguns atos não são mediados. Você ligar para seu amigo por querer encontrá-lo pode exigir uma série de fatores para uma explicação completa (fatores que incluem expectativas sociais, uso da linguagem, tipo de personalidade etc.). Mas alguns atos não serão mais responsabilizados por outros atos. Quando você ligou, não o fez desejando que certos neurônios disparassem ou que seu sistema nervoso reagisse de alguma maneira; você simplesmente realizou o ato.
Quando Narveson reclama que a explicação teísta carece de certos mecanismos e elementos causais, sua queixa contraria explicações intencionais nas atividades humanas comuns (e de outros animais). Existem atos básicos que não são mais redutíveis a "detalhes impressionantes" nas explicações bonafide da agência humanacotidiana. (Deve-se notar também que, se sempre deve haver uma resposta para "como as coisas funcionam" na causalidade física, não pode haver causas físicas básicas. Isso parece contrário a muitas visões de causalidade no mundo físico e ameaça uma regressão infinita.) Se as intenções divinas são básicas, o mesmo ocorre com algumas intenções humanas, embora estas sejam exercidas por seres com corpos animais. Isso implica que Narveson não consegue excluir a possibilidade de relatos teístas.
Se Narveson não foi bem sucedido, é difícil ver como Bagger poderia ser. Em sua caracterização do naturalismo no livroReligious Experience, Justification, and History, onde ele procura descartar todas as explicações teístas, ele explicitamente não se compromete com o materialismo ou com o vazio das explicações intencionais. Se ele permite explicações intencionais em princípio, é difícil perceber por que um apelo às nossas sensibilidades e valores "modernos" pode excluir o teísmo em essência. Lembre-se do tratamento de Bagger sobre o que é natural, citado anteriormente. Seu uso de "natural" é surpreendentemente amplo, pois sua definição parece permitir um mundo natural radicalmente não materialista (talvez até idealista, segundo o qual a realidade consiste em estados mentais) ou pan-psíquico (a visão de que toda a realidade tem propriedades mentais) desde que Deus não esteja incluído. Mas se o natural pode incluir uma referência tão ampla ao mental e ao intencional, comoessenatural pode excluir, como princípio geral, um apelo à intencionalidade divina?

Bondade Essencial

Nas Escrituras do Judaísmo, Cristianismo e Islã, o divino é uma realidade de grandeza insuperável, com soberania incomparável como Criador e como uma bússola moral para a vida humana, digna de nossa mais alta lealdade, admiração, fidelidade e adoração. A bondade da vida humana e de outras vidas e o bem de toda a criação parecem derivar da bondade de Deus. Os Salmos (com autoridade para o Judaísmo e o Cristianismo) proclamam a grande bondade de Deus (por exemplo, Sl 31:19; 106: 1) e descrevem a obra e o ser de Deus como perfeitos (Sl 19: 7; Mt 5:48), por exemplo, enquantoo Alcorão descreve Deus como poderosa sabedoria e verdade, merecedor de todo louvor (Sura 31). Algumas passagens nas Escrituras das tradições monoteístas implicam que Deus não pode fazer o mal, por exemplo: "É impossível que Deus minta" (Hb 6:18). A ideia de que Deus é essencialmente bom decorre da ideia de que Deus é excelência suprema. Um ser capaz de cair no mal e na impiedade não é excelente.
Alguns teístas, no entanto, não aceitam a noção de que Deus é essencialmente bom, oferecendo contra "o argumento do louvor".

1. Um agente faz um ato digno de louvor quando o agente faz o ato, mas poderia ter feito o contrário.
2. Se Deus é essencialmente bom, então Deus não pode ser louvado por fazer apenas boas ações, pois Deus não poderia fazer o contrário.
3. Portanto, Deus não é digno de louvor ou não é essencialmente bom.

Uma resposta a isso é que, embora a bondade essencial de Deus implique que “Deus não faz o mal” ou, ainda de forma mais contundente, “Deus não pode fazer o mal”, isso não fixa toda ação divina. Ou seja, embora criar um cosmos possa ser bom, Deus não precisa criar um cosmos. Se Deus não criar o cosmos, coisa alguma ou pessoa teria sido afetada. A própria criação é comumente considerada na tradição teísta como um presente, e um doador pode ser louvado com razão por dar esse presente. Louvar e adorar a Deus não se limita ao que pode ser chamado de louvor moral. Quando alguém sente e expressa reverência diante de Deus, isso pode ser semelhante a (mas muito maior que) a admiração que se sente diante de fenômenos naturais sublimes de tirar o fôlego (uma montanha incrível, a esplosão de uma estrela, o nascimento de um filho e assim por diante). A reverência não é sobre comportamento moral, mas essa reverência ainda é sobre o valor abundante.
Se Deus é essencialmente bom e a causa final, de onde vem o mal? O problema do mal é uma preocupação constante dos filósofos e, infelizmente, não temos espaço aqui para abordá-lo adequadamente. Alguns filósofos atribuem isso à liberdade da vontade, outros à relatividade de nossas percepções subjetivas, outros ao fato de que a interferência constante de Deus na forma de milagres resultaria em irregularidades maciças na vida etc. Um ponto que vale a pena mencionar, no entanto, é que, se o problema do mal faz sentido, você está no caminho de aceitar a bondade essencial como parte integrante do conceito de Deus. Afinal, o problema do mal não seria um "problema" sem o conceito de um Deus essencialmente bom.
Mais objeções à bondade essencial de Deus surgem quando combinadas com os dois atributos divinos a seguir: onipotência e onisciência. Discutimos essas objeções nas seções a seguir.

Onipotência

A ideia de que Deus é todo-poderoso é um princípio inicial e fundamental do monoteísmo. Parte do que diferenciava as tradições religiosas monoteístas eram suas histórias sobre a criação. Diferentemente das histórias dos deuses da Mesopotâmia e do mundo Greco-Romano, em que a criação envolvia violência e até mesmo estripação, o Deus do monoteísmo cria de forma singular, com poder incomparável. Em Gênesis, a criação é retratada em termos de ordenações divinas verbalizadas ou em termos de ação mediada e não mediada. Uma ação é mediada quando outro agente está envolvido (Deus cura em resposta à oração peticionária).
Contudo, os quebra-cabeças surgem com relação à onipotência de duas maneiras: interna e externamente. Os quebra-cabeças internos dizem respeito apenas ao próprio atributo, enquanto os quebra-cabeças externos surgem quando o atributo é comparado com outros atributos divinos, como a bondade essencial. A mais famosa das dificuldades internas é concebida em termos de uma tarefa que um ser onipotente não pode realizar. Aqui está uma versão, às vezes chamada de "O Paradoxo da Pedra".

1. Um ser onipotente é capaz de realizar qualquer ato.
2. Se Deus é onipotente, Deus pode criar uma pedra tão pesada que ninguém pode levantá-la.
3. Se Deus é onipotente, Deus pode levantar qualquer pedra.
4. Mas se Deus pode levantar qualquer pedra, Deus não pode criar uma pedra tão pesada que ninguém possa levantá-la.
5. E se Deus pode criar uma pedra tão pesada que ninguém possa levantá-la, então pode haver uma pedra que nem mesmo Deus pode levantar.
6. Há pelo menos um ato que Deus não pode realizar.
7. Portanto, Deus não é onipotente. (Alguns argumentam de forma mais radical que, como Deus deve ser onipotente para ser Deus, isso prova que Deus não existe.)

A maneira mais comum de resolver esse quebra-cabeça é corrigir a premissa 1 assim: Um ser onipotente é um ser capaz de realizar qualquer ato possível. Não pode haver uma pedra tão pesada que um ser capaz de levantar qualquer pedra não possa levantá-la. Só parece possível se estivermos realmente imaginando um ser menos poderoso que Deus. Nós, como seres humanos, podemos construir objetos tão pesados que não podemos levantá-los, mas um ser como Deus que pode realizar qualquer coisa possível, não pode (por razões lógicas) criar um objeto que Deus não pode levantar.
Achamos que esta é uma resposta decisiva para "O Paradoxo da Pedra". Não há necessidade de realizar acrobacias filosóficas, como alguns filósofos fazem, argumentando que Deus pode fazer o que é logicamente incoerente ou pode optar por limitar os próprios poderes de Deus (criar uma pedra e optar por não conseguir levantá-la). Parte do problema com esse argumento, a propósito, é que, ao insistir que a onipotência inclua a capacidade de fazer o que é logicamente incoerente, ela remove nossa capacidade de pensar sobre esses assuntos.
Um problema mais vexatório com a onipotência surge quando o atributo é comparado com outras propriedades divinas, especialmente a bondade essencial, que (contrariamente à hipótese de Dawkins) acreditamos não ser um mero complemento nas tradições religiosas teístas. Considere a seguinte dificuldade.

1. Um ser onipotente é capaz de realizar qualquer ato logicamente possível.
2. Um ser essencialmente bom não é capaz de realizar o mal.
3. Como Deus é essencialmente bom, Deus não pode realizar nenhum ato logicamente possível.
4. Portanto, Deus não é onipotente.

O argumento pode ser reformulado ao comparar Deus com um ser divino que não é essencialmente bom, a quem podemos chamar de Moloque.

1. Se Deus é essencialmente bom, Deus não é capaz de fazer o mal.
2. Não pode haver um ser mais poderoso que Deus.
3. Pode haver um ser, Moloque, com todas as propriedades de Deus, exceto a bondade essencial.
4. Se Moloque existe, Moloque pode realizar qualquer ato que Deus possa realizar, junto com qualquer ato maligno.
5. Nesse caso, Moloque seria mais poderoso que Deus.
6. Conclusão: Deus não é essencialmente bom ou, mais radicalmente, Deus não existe.

Várias manobras lógicas foram usadas para responder a esses argumentos. Por exemplo, foi argumentado que um ser essencialmente bom pode realizar o mal para alcançar um bem maior, mas isso (presumivelmente) apenas permitiria certos atos. Também foi argumentado que Deus tem a capacidade de realizar o mal, mas não pode realizar o mal. (Imagine alguém como Madre Teresa: ela tinha o poder de empurrar uma pessoa inocente debaixo de um ônibus, mas, devido a sua personalidade, ela não poderia fazê-lo.)
Sugerimos que a resposta mais promissora para essas dificuldades é sustentar que a capacidade de realizar o mal não é um poder adequado a um ser excelente, como foi argumentado por Agostinho (354-430), Boécio (480-526), e Tomás de Aquino (1224/5–1275). Para criaturas humanas livres, nossa capacidade de realizar o mal pode ser um reflexo essencial (ou o complemento necessário) de nossa capacidade de realizar o bem livremente, mas para um Deus com excelência insuperável, a capacidade de realizar o mal é uma deficiência, uma condição de vulnerabilidade à corrupção e degradação. É melhor pensar no poder de Deus, não em termos de poder puro, mas de poder perfeito e louvável.
Uma ênfase no poder perfeito na filosofia de Deus também concorda com objeções feministas ao conceito de Deus como poder absoluto. A feminista moderna mais antiga Mary Wollstonecraft (1759-1797) se queixou que os homens tendem a privilegiar o poder bruto em seu conceito de Deus:
O homem, acostumado a se curvar ao poder em seu estado selvagem, raramente pode se desfazer desse preconceito bárbaro, mesmo quando a civilização determina quanto o mental é superior à força corporal; e sua razão é obscurecida por essas opiniões grosseiras, mesmo quando ele pensa na Deidade. - Sua onipotência é feita para engolir ou presidir sobre seus outros atributos, e esses mortais supostamente limitam seu poder de forma irreverente, pois pensam que este deve ser regulado por sua sabedoria.[6]
Em vez disso, Wollstonecraft aconselhou a dar primazia à bondade de Deus. Aqui, novamente, vemos os benefícios de considerar os atributos divinos em sua interconectividade como um todo coerente. A bondade essencial de Deus nos leva a uma compreensão mais sutil da natureza da onipotência de Deus, que também pode ter implicações na maneira como nós humanos entendemos nossos próprios usos do poder.
O apelo ao poder perfeito e à bondade essencial foi usado por alguns filósofos Cristãos para articular a unidade ideal de vontades na Trindade. Richard Swinburne e Stephen T. Davis sustentaram que a bondade suprema é exemplificada na Trindade pelo amor-próprio ideal, o amor de outro e o amor de dois por um terceito. O tópico é amplo demais para se desenvolver completamente aqui, mas observamos que o conceito de poder perfeito tem sido frutífero para a teologia filosófica contemporânea construtiva.[7]

Onisciência

A tese de que Deus é onisciente gerou muita atenção filosófica, especialmente no que diz respeito ao escopo do conhecimento divino. O foco principal tem sido os "contingentes livres futuros", eventos futuros genuinamente contingentes, não predeterminados, como resultado do exercício da livre escolha. Liberdade significa a possibilidade de fazer algo com a capacidade de fazer o contrário. Mas e se Deus souber perfeitamente e precisamente que você dará à Oxfam amanhã? Nesse caso, o futuro parece fixo. Se Deus sabe o que você fará amanhã, você não poderá fazer o contrário. Mas se o futuro for fixo, como você pode ser livre?
Existem várias respostas:
A primeira é simplesmente afirmar que a objeção assume falsamente que o conhecimento divino de que você dará livremente à Oxfam amanhã prejudica sua liberdade. Se você fizer x livremente amanhã e tiver o poder de fazer o contrário, a presciência do que você fará livremente não implica em nada que você não possa fazer o contrário. Para adotar uma analogia da filosofia Grega antiga, se você souber qual carro vencerá a corrida amanhã, seu conhecimento prévio não determina o vencedor. Um opositor pode protestar dizendo que você pode conhecer o vencedor apenas se a corrida [e o resultado] for fixado, mas dois pontos podem ser levantados contra essa objeção quando aplicada a Deus: primeiro, o modo de conhecimento de Deus pode ser profundamente diferente da presciência humana (veja a seção sobre eternidade abaixo) e, segundo, como nosso conhecimento da ação livre passada não prejudica a liberdade do ator, por que o conhecimento do futuro deveria?
A segunda resposta ao nosso desafio inicial invoca uma descrição radicalmente abrangente do conhecimento divino. Segundo alguns filósofos, Deus possui o que é chamado de "conhecimento médio", ao saber o que todas as criaturas possíveis fariam sob qualquer condição. Ao conhecer em que circunstâncias você se encontra em qualquer momento da sua vida, Deus sabe como você exercitará sua agência e seu poder de fazer o contrário. Essa compreensão elevada do conhecimento divino foi formulada pelo filósofo do século XVI, Luis de Molina e hoje é defendida por Thomas Flint e William Lane Craig.
Uma terceira resposta diferente (e controversa) é que a onisciência não cobre os futuros contingentes livres. Se você ainda não deu o objeto à Oxfam, se você vai dar ou não, isso não é fixo ou determinado. Mas se não se sabe o que você fará, a "onisciência" pode cobrir apenas "todo o conhecimento possível". Se não houver conhecimento possível do que ocorrerá nas contingências futuras livres (embora muitos teólogos contestassem isso), um ser onisciente não seria obrigado ou esperaria conhecer o futuro.
Vamos considerar outra objeção à onisciência divina. Uma versão formal do argumento envolve o que é chamado de "empirismo conceitual".

1. De acordo com o empirismo conceitual, para apreender o conceito de uma sensação ou emoção, um ser deve ter experimentado. Para entender adequadamente o conceito vermelho, você precisaria ter experimentado a cor vermelha; para entender a vulnerabilidade, você deve estar vulnerável; para entender o sadismo, você deve ter se sentido sádico.
2. Tese: Deus é onisciente. Deus, por exemplo, conhece o conceito de vermelho, vulnerabilidade e sadismo.
3. Tese: Deus também é onipotente, incorpóreo e essencialmente bom.
4. Se a premissa 1 for verdadeira, as premissas 2 e 3 não poderão ser verdadeiras. Se Deus é incorpóreo, Deus não tem faculdades cognitivas sensoriais e, portanto, não pode experimentar o vermelho. Se Deus é onipotente e, portanto, possui poder perfeito, Deus não pode experimentar a vulnerabilidade. Se Deus é essencialmente bom, Deus não pode experimentar emoções sádicas. Se Deus não pode experimentar tais sensações e emoções, Deus não pode conhecê-las e, portanto, Deus não pode ser onisciente.

Este é realmente um argumento interessante. A primeira premissa é intuitivamente plausível. Afinal, se você soubesse tudo sobre o conceito de vermelho (as condições da retina e do cérebro essenciais para ver o vermelho, os comprimentos de ondas relevantes etc.), mas não tivesse a sensação de ver o vermelho, você não saberia como é o vermelho.
A conclusão pode ser contestada objetando-se a sua compreensão da relação dos atributos divinos com as emoções e sensações. Muitos teístas afirmam que um Deus todo-poderoso que cria criaturas genuinamente livres, pode ter que limitar o poder divino para que as criaturas sejam genuinamente livres e, assim, experimentaria um tipo de restrição ou fraqueza auto-imposta. Se as criaturas podem genuinamente e livremente resistir ao amor de Deus, um Deus amoroso não experimentaria vulnerabilidade?
Um argumento semelhante é feito com respeito à relação entre bondade essencial e sadismo (ou qualquer outra emoção que seja errada ou injusta). A objeção de que Deus não pode experimentar uma emoção que é injusta, ignora a possibilidade de que emoções injustas sejam estados complexos feitos de componentes moralmente aceitáveis, combinados ou direcionados incorretamente. Indiscutivelmente, um ser moralmente perfeito que não odeia ninguém, pode entender como é odiar pessoas ao compreender os conceitos de pessoas e ódio (não há nada de errado com o ódio per se, como no caso do ódio ao mal). Um Deus bom poderia entender o conceito de sadismo, apreendendo conceitos como prazer, dor, subordinação e poder. (Aliás, a suposição de que uma pessoa deve ser ela mesma contaminada ou cruel, se apenas essa pessoa entender o que é ser cruel, condenaria muitos artistas verdadeiramente maravilhosos. Na construção de Iago por Shakespeare na peça Othello, ele de alguma forma participou da malícia venenosa de Iago? Não necessariamente.)
Mas, além dessas maneiras de responder ao argumento a partir do empirismo conceitual, pode-se desafiar a primeira premissa (que um ser deve ter uma experiência de x para entender x).
Primeiro, não há prova de que um agente incorpóreo não possa experimentar sensações. De fato, hoje em dia muitos filósofos (mas não a maioria) pensam que as sensações são propriedades mentais e não são idênticas aos produtos dos sentidos (da retina, por exemplo) ou estados cerebrais, embora sejam causados por ambos. Se isso for possível, o argumento falha porque Deus (em teoria) poderia experimentar sensações.
Segundo, mesmo que as criaturas humanas não possam compreender x sem experimentar x, esse é um princípio auto-evidente que governa todas as formas possíveis de conhecimento? Presumivelmente, nem sempre é necessário estar em um estado de x para conhecer x: eu não preciso ser um quadrado para saber sobre quadrados, estar quente para saber que algo está quente ou odiar para saber que alguém é odioso , e assim por diante. O empirismo conceitual parece basear-se na premissa de que conhecer algo envolve uma espécie de fusão, na qual o x que é conhecido é de alguma forma tornado parte integrante do sujeito conhecedor, como se x viesse a definir ou marcar o conhecedor. Algo assim foi de fato proposto por David Hume, que sustentava que as ideias das sensações eram sensações débeis ou enfraquecidas. Mas parece haver poucas razões para aceitar isso. Uma ideia sobre, digamos, recessão econômica, não é uma sensação enfraquecida de nenhum tipo. Existem limites para o que nós humanos podemos visualizar. Não podemos formar uma imagem visual de um objeto com mil lados, mas podemos concebê-lo e refletir sobre suas propriedades.

Eternidade

A ideia de que Deus transcende ou está além da mudança temporal tem uma história rica. Até certo ponto, as grandes tradições monoteístas herdaram um conceito Platônico de realidade e valor, segundo o qual o que é mais real e valioso (para Platão, isso foi descrito como "o bem") é incorruptível e não está sujeito a alteração, fragmentação e decadência que ocorre com o tempo. Alguns filósofos sustentaram que Deus deve ser eterno, porque de outra forma Deus é prisioneiro do tempo e incapaz de desfrutar da unidade da vida que deve marcar a perfeiçãosuprema.
Um defensor contemporâneo da eternidade de Deus, Brian Leftow, argumenta da seguinte maneira: a vida de um ser temporal tem o que ele chama de "limites internos", nos quais partes da vida do ser são separadas de outras. Tais limitações têm suas vantagens para os seres que vivem no tempo, mas com Deus marcaria uma desintegração e fragmentação que não condiz com a plenitude e perfeição do divino. Um ser perfeito teria todo o seu ser ou realidade em um estado completo, em vez de se espalhar em um passado que se foi e em um futuro que ainda não chegou.
A tese de que Deus é eterno pode parecer estar em desacordo com as narrativas das escrituras, nas quais Deus opera um ato depois de outro em sequência. A maioria dos teólogos das três tradições monoteístas tratam essas referências a Deus como altamente análogas ou metafóricas, porque a Bíblia Hebraica e Cristã e o Alcorão descrevem Deus do nosso ponto de vista. Não vai ajudar muito pensar em Deus como um ser que age sucessivamente no tempo (primeiro fazendo uma coisa, depois outra), e ainda achar queDeus não age dessa maneira. Alguns explicam isso argumentando que Deus eternamente deseja a sucessão, que Deus deseja que haverá mudanças, mas a vontade de Deus em si não muda. O ser interior de Deus é, portanto, inalterável ou imutável, não sujeito a alteração, fragmentação e decadência. Deus pode ter uma dimensão temporal estando em todos os momentos ou (como os Cristãos acreditam), na encarnação, como Jesus Cristo na Palestina do primeiro século, mas o ser interior de Deus é transcendente. A vida de Deus é tota simul, ou de uma só vez, como Boécio descreveu de maneira famosa.
Esse entendimento de Deus tem pelo menos dois benefícios. A crença de que Deus transcende o tempo fornece uma maneira promissora de abordar o problema da liberdade e do conhecimento prévio discutido anteriormente. Se Deus está em algum sentido além do tempo, o que é para nós passado e futuro pode ser presente para Deus. Deus, portanto, não antevê ações futuras, pois Deus as compreende em um momento presente divino. A transcendência de Deus do tempo tem o benefício adicional de permitir o entendimento de que Deus criou o tempo. Se Deus é estendido temporalmente (significando que Deus tem passado, presente e futuro), Deus não pode ser independente do tempo e, portanto, não pode ser o criador do tempo.
Existe uma enorme literatura que discute se Deus é temporalmente eterno ou temporal, mas sem começo. Considere apenas uma objeção e resposta.
De acordo com o que se pode chamar de objeção da simultaneidade, a relação de simultaneidade é transitiva. Uma relação transitiva permite transferir uma relação: se você é mais alto que Sócrates e Sócrates é mais alto que Platão, então você é mais alto que Platão. Em termos de relações temporais, parecemos ter transitividade. Ou seja, se estou escrevendo ao mesmo tempo que você está correndo e ao mesmo tempo em que Chris está cantando, estou escrevendo ao mesmo tempo em que Chris está cantando. Se Deus existe simultaneamente com a queima de Roma por Neroe com seu assobio, então Nero está queimando Roma ao mesmo tempo que você assobia.[8] Se você está assobiando ao mesmo tempo que Nero está queimando Roma, temos um absurdo óbvio e, portanto, Deus não pode ser eterno.
Os defensores da eternidade de Deus responderam que o argumento da simultaneidade falha porque a simultaneidade é transitiva para criaturas temporais como nós, mas não para Deus, para quem todos os tempos estão presentes. A vida de Deus não é, por assim dizer, vivida instante a instante, mas em um presente estendido e atemporal. Como Leftow coloca; “Um Deus eterno é Deus presente com o todo do tempo, estendendo sua vida ao lado deste tempo.”[9]Uma vez que se compreende consistentemente o que está envolvido quando pensamos sobre um ser eterno, pode-se ver que a objeção de simultaneidade transfere injustamente as relações temporais para o atemporal.

A Flexibilidade do Teísmo e a Importância da Experiência

Nesta visão geral de atributos, objeções e respostas, pode-se começar a ver a dificuldade de estabelecer a incoerência do teísmo. Muitas opções estão disponíveis ao teísta para refinar o conceito de Deus. Se, por exemplo, um argumento da simultaneidade fosse retrabalhado de maneira eficaz, um teísta sempre pode revisar sua compreensão da eternidade e sustentar que Deus não é atemporal, mas eterno ou sem começo. (Richard Swinburne e Nicholas Wolterstorff adotam essa alternativa.) E, como observamos anteriormente, é possível abordar o aparente conflito entre liberdade e onisciência em vários níveis. Embora não haja espaço para desenvolver uma filosofia mais completa sobre Deus aqui, sugerimos que um ponto crucial em que a flexibilidade é essencial se preocupa em integrar nosso conceito de Deus à experiência de sofrimento e opressão. Juntamente com vários outros teístas filosóficos, acreditamos que um Deus amoroso responde afetivamente e é solidário com os injustamente oprimidos. Pensamos que uma combinação de testemunho bíblico, experiência religiosa e reflexões sobre teoria de valores e amor deve nos levar a ver Deus como responsivamente afetivo ao cosmos que Deus sustenta e ama. O teísmo tem abertura suficiente para que se possa ser um teísta clássico e afirmar que Deus é impassível (não sujeito a paixão) e imutável (não sujeito a mudança), mas também pode-se ser um teísta Cristão[10] e sustentar que Deus é passível (Deus tem amor como uma paixão) e a vontade de Deus para a criação envolve uma interação divina-humana íntima e envolvente.
O que chamamos de flexibilidade do teísmo é especialmente importante à medida que avançamos além de uma visão geral teísta do mundo e levamos a sério a natureza Trina de Deus e a encarnação. Para o Cristão, Deus não é como um princípio estagnado e impessoal. Todos os atributos divinos estão envolvidos na dinâmica da encarnação e na inter-relação do amor dentro da Divindade, onde o amor não está na ignorância, mas através do conhecimento completo e onde esse amor interior se concretiza através do poder na criação.
Explorar razões para reconhecer a verdade do teísmo é imediatamente relevante para explorar razões para reconhecer a coerência do teísmo. Algumas das melhores razões para pensar que x é possível são as razões para pensar que x é real. Vários outros capítulos deste livro abordam tais argumentos positivos. De nossa parte, notamos que apenas a possibilidade interessante do teísmo pode abrir experimentalmente à possibilidade de um encontro vivo com Deus. Como Peter Donovan observa:
Um crente religioso que vê o mundo como umaesfera na qual Deus pode possivelmente se manifestar (de uma maneira ou de outra) tem o potencial para toda uma gama de experiências significativas não abertas à pessoa sem essa visão de mundo. Ele não vê apenas o mundo de uma maneira religiosa. Ele vive dentro desse mundo, e age, responde e experimenta seus eventos e acontecimentos (incluindo seus próprios sentimentos e estados de espírito), com a possibilidade de que, ao fazê-lo, possa estar entrando em contato não apenas com o mundo e outras pessoas do mundo, mas com a atividade e as manifestações de Deus.[11]
O avanço dos argumentos teóricos contra os Novos Ateus sobre a coerência de Deus é apenas o começo da investigação. O próximo passo é explorar a possibilidade de encontrar a existência de Deus com humildade, consciente de que os atributos divinos, como a onisciência, não são menos do que podemos conceber, mas, em vez disso, esses atributos e, de fato, o ser de Deus são muito maiores em profundidade e riqueza do que podemos imaginar.[12]

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Fonte:
TALIAFERRO, Charles; MARTY, Elsa J.The Coherence of Theism.In COPAN, Paul; CRAIG, William Lane (General Editors). Contending with Christianity’s Critics: Answering New Atheists & Other Objectors. Nashville, Tennessee: B&H ACADEMIC, 2009.
Tradução Walson Sales.
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Notas:
[1] R. Dawkins, The God Delusion (Boston: Houghton Mifflin Co., 2006), 31, 106.[na versão em português, a citação do Livro Deus, Um Delírio, se encontra na página 121].
[2] As citações Bíblicas são da Holman Christian Standard Bible. [Nota do Tradutor: as citações na tradução são da Bíblia Online, Almeida Corrigida Fiel].
[3] VejaC. Taliaferro and S. Goetz, “The Prospects for Christian Materialism,” Christian Scholar's Review 37/3 (2008): 303–21.
[4] M. Bagger, Religious Experience, Justification, and History (Cambridge: Cambridge University Press, 1999), 13.
[5] J. Narveson, “God by Design?” in God and Design: the Teleological Argument and Modern Science, ed. N. A. Manson (London: Routledge, 2003), 93–94.
[6] M. Wollstonecraft, A Vindication of the Rights of Women (Mineola, NY: Dover Publications, 1996), 45.
[7]Veja S. T. Davis, Christian Philosophical Theology (New York: Oxford University Press, 2006).
[8] A. Kenny, The God of the Philosophers (Oxford: Oxford University Press, 1979), 38–39.
[9] B. Leftow, Time and Eternity (Ithaca: Cornell University Press, 1991), 117.
[10]Em um esforço para enfatizar a interação divina com a criação, alguns pensadores adotaram a visão da filosofia do processo ou do panenteísmo.
[11] P. Donovan, Interpreting Religious Experience (New York: Seabury, 1979), 81.
[12]Agradecemos a Elizabeth Clark pelas críticas a uma versão anterior deste capítulo e a Tiepolo por seu companheirismo fiel.

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