BY ALVIN PLANTINGA
Suponho que o lugar em que encontraremos os conflitos mais francos são os relatos da própria religião oferecidos pelo estudo científico da religião, incluindo a psicologia evolucionista e a ciência cognitiva. É claro que muitas dessas teorias sobre a religião são incompatíveis entre sí. Algumas delas pressupõem que a religião representa uma vantagem adaptativa; outras, que não proporciona vantagem alguma, ou proporciona desvantagem [é um vírus maligno, como parece pensar Richard Dawkins]. Outras pressupõem que a religião surge por meio da seleção grupal, entretanto algumas afirmam que a seleção grupal é impossível.
Mesmo assim, não faltam exemplos de teses que entram em conflito com a crença religiosa, além de se conflitarem umas com as outras. Steven Pinker, por exemplo, pergunta: “De que modo a religião pode caber em uma mente supostamente projetada para rejeitar tudo o que não seja palpavelmente verdadeiro”? Ele mesmo responde que “a religião é uma medida desesperada a que as pessoas recorrem quando muita coisa estar em jogo e já se esgotaram os recursos habituais que levam ao sucesso – remédios, estratégias militares, galanteios e, no caso do clima, nada”. Em seguida, ressuscita o velho chavão, segundo o qual a religião é obra de sacerdotes inescrupulosos e paroquianos crédulos: “Insinuo ainda outra possibilidade: a demanda por milagres cria um mercado no qual os aspirantes a sacerdotes competem , e eles alcançam o sucesso explorando a dependência das pessoas em relação aos experientes. Hoje, os especialistas em quem confio são os dentistas e médicos; a mesma confiança teria feito com que eu me submetesse a um charlatão há cem anos e aos seus encantamentos de um curandeiro de mil anos”.
Talvez esta seja mais uma declaração de desgosto pessoal para com a religião do que um pronunciamento científico ou mesmo semi-científico, mas é apenas uma entre muitas. Rodey Stark propôs uma teoria de acordo com a qual a religião é como se fosse, em relação ao pensamento racional, uma espécie de organismo primitivo cujo funcionamento ainda é precário em relação ao pensamento racional, uma tentativa de obter dádivas espirituais inexistentes – a vida eterna, uma relação correta com Deus, a salvação, a remissão dos pecados – por meio de tratativas com seres sobrenaturais igualmente inexistentes.
A intenção é demostrar que o pensamento racional, ou seja, um pensamento que liga meios e fins ou compara custos e benefícios, surge pela via normal do processo evolutivo. Mas, a capacidade de pensar desse modo inevitavelmente carrega consigo a capacidade de buscar objetivos inexistentes, como o pote de ouro no fim do arco-íris ou aqueles ligados á religião. Nessa forma simples, essa teoria é claramente incompatível com a crença cristã, pois, para esta, pelo menos alguns dos seres sobrenaturais e das dádivas espirituais mencionadas existem de fato. Outro exemplo: David Sloan Wilson(que não deve ser confundido com E. O. Wilson) acha que a religião é essencialmente um meio de controle social que emprega ou envolve crenças fictícias. Mais uma vez, nessa forma simples , isso é incompatível com a crença cristã. Entre os autores mais importantes do estudo científico da religião, podemos mencionar: Pacal Boyer, Scott Atran e Justin Barret. Há também algo mais popular em Breaking the spell, de Daniel Dennett. Inicialmente, da mesma forma que Stark, Boyer considera a religião uma espécie de organismo primitivo cujo funcionamento ainda é precário ; é consequência ou efeito colateral do nosso tipo de cérebro. O fato de termos esse tipo de cérebro deve ser explicado de maneira usual, ou seja, em razão de sua contribuição adaptativa; mas, segundo Boyer, considerando um cérebro como o humano, a religião se desenvolve naturalmente. Em essência, para ele, a religião é uma família inteira de fenômenos cognitivos que implicam em seres “contraintuitivos”, os quais agem de maneira contrária ás categorias ordinárias. Por exemplo, a religião envolve frequentemente seres que podem agir no mundo sem serem visíveis. Esse caráter contraintuitivo e extraordinário dos seres em questão atrai a atenção e os torna memoráveis. No entanto, é preciso que eles sejam minimamente contraintuitivos, pois, uma distância muito grande entre eles e a vida ordinária os tornaria difíceis de levar a sério e difíceis de lembrar. Uma caixa de lenço de papel que fosse a governante secreta do mundo, por exemplo, seria contraintuitiva demais; uma religião da qual ela fosse o personagem central provavelmente não prosperaria.
Atran “assina embaixo” vários pontos da teoria de Boyer e acrescenta outros: segundo ele, “ a religião é [1] um compromisso caro e difícil de simular, de uma comunidade com [2] um mundo contrafactual e contraintuitivo composto de agentes sobrenaturais que [3] dominam as razões da ansiedade existencial das pessoas, como a morte e as decepções”. De acordo com ele, portanto, não basta qualquer explicação contrafactual e contraintuitiva para constituir uma religião (uma chaleira de água fervente orbitando o Sol, por exemplo, não serviria); tais explicações devem envolver agentes sobrenaturais. Além disso, não é qualquer agente que serve [Mickey Mouse, como ele diz, não serviria]; os agentes precisam se encarregar da ansiedade existencial das pessoas e atenuá-las. Por que, então, o ser humano é religiosos? Como Boyer, Atran acredita que, embora novamente tenha surgido e se desenvolvido pela seleção natural, a religião em sí não tem função adaptativa, mas é um subproduto da nossa arquitetura cognisitiva.
“A religião é materialmente dispendiosa e implacavelmente contrafactual, chegando a ser contraintuitiva. A prática religiosa é custosa por envolver sacríficios materiais (o tempo reservado á oração, pelo menos), gastos emocionais (incita medo e esperança) e esforços cognitivos (a necessidade de compatibilizar a rede de crenças factuais e a de contraintuitivo)”.
Alguns autores parecem pensar que ao trazer á tona qualquer hipótese sobre a origem evolutiva da religião, de alguma forma eles a estão desacreditado. No entanto, deixando de lado o infundado “contrafactual”, não há nada em Boyer ou em Atran que seja incompatível com a crença teísta ou cristã, embora ambos pareçam, na melhor das hipóteses, extremamente céticos quanto a essa crença. Descrever a origem da crença religiosa e dos mecanismos cognitivos envolvidos não basta, de maneira alguma, para impugnar sua veracidade. Ninguém acha que descrever os mecanismos envolvidos na percepção impugna a veracidade das crenças perceptuais. Por que pensar que seria diferente no que diz respeito á religião? Segundo, a crença cristã, Deus nos criou de tal maneira que podemos conhecê-lo e estar em comunhão com Ele. Poderia tê-lo feito de muitas maneiras ; poderia, por exemplo, ter feito com que nossas faculdades cognitivas evoluíssem pro seleção natura, de uma forma que fosse natural parra nós formar crenças acerca do sobrenatural em geral e do próprio Deus em particular. Encontrar uma origem “natural” para a religião não a desacredita.
Uma linha crítica mais promissora: pode-se propor que os mecanismos cognitivos que dão origem á crença religiosa, ao contrário dos envolvidos na percepção, por exemplo, são eminentemente propensos ao erro. O mecanismo central sugerido é chamado de “instrumento de detecção de agentes”. Tal instrumento, segundo essa linha de raciocínio, provavelmente detectaria muitos falsos positivos; Stewart Guthrie o chama de “instrumento hipersensível de detecção de agentes[HADD é sigla em inglês de Hypersensitive Agency Detection Device. Doravante IHDA]. O instrumento é hipersensível, diz Guthrie, porque, enquanto, pouco se perde com um falso positivo, um falso negativo pode ser catastrófico. Suponhamos que você veja, por reflexo, um tigre aparentemente olhando para você a uma distância de cinquenta metros; a falha em vê-lo como um agente á procura de almoço pode, talvez, ser desastrosa. Em comparação, atribuir intenções e atividades ás árvores, ás nuvens ou a lua é um erro, mas é muito mais benigno. “Melhor prevenir do que remediar” aparece em quase todas as explicações desse tipo.
Mas, é claro que o fato de a crença nos agentes sobrenaturais surgir do IHDA, se é que isso existe, nem sequer tende a demonstrar que essa crença seja um dos falsos positivos; esse mesmo dispositivo é responsável por muitas outras crenças verdadeiras, por exemplo, a crença na existência de outras mentes e outras pessoas. Presume-se que ninguém queria defender a tese de que a crença em oura mente é dúbia, irracional ou intelectualmente deficiente por ter sido produzida por um instrumento de detecção de agentes que de vez em quando resulta em falsos ´positivos. A mera descoberta ou postulação de uma fonte de crença religiosa, como é o saco do IHDA, nada faz para pôr essa crença em descrédito. O mesmo se pode dizer da observação de que essa suposta fonte produza falsos positivos. Até aí não há conflitos.
Consideremos a teoria antiga de Stark – de que a religião é como um organismo primitivo cujo funcionamento ainda é precário em relação ao pensamento racional e cujo objetivo é a busca de dádivas espirituais inexistentes por meio de tratativas como agentes sobrenaturais igualmente inexistentes. Essa proposta é incomparável com o pensamento ou o comprometimento cristãos., pelo único fato de declarar que tais dádivas espirituais e agentes não existem. Mas, não haveria outra teoria, talvez tão boa quanto a de Stark e empiricamente equivalente á dele, que não se comprometesse nem com a existência nem com a inexistência dessas dádivas espirituais? E, de qualquer maneira, quem há de querer afirmar que faz parte da ciência – parte de uma teoria científica - declarar que essas dádivas espirituais não existem? Vamos supor que eu proponha uma como teoria a conjunção das leis de Newton com o ateísmo. Acaso assim, consegui desenvolver uma teoria científica incompatível com o teísmo? De modo algum. Sendo assim, vamos eliminar o ponto ofensivo da teoria de Stark e chamar o resultado de “Stark-menos”. Será que Stark-menos é incompatível com a crença cristã? Stark-menos pode ser resumida nas teses de que: [a] a religião envolve a busca de certos fins ou dádivas espirituais – a salvação, a vida eterna e outros semelhantes - por meio de tratativas com seres que se alega serem sobrenaturais; [b] ela surge como subproduto evolutivo ou organismo primitivo cujo funcionamento ainda é precário em relação á capacidade de pensar racionalmente. Essa teoria é incompatível com o pensamento cristão? Não há nada óbvio nisso. Então consideremos Wilson e Ruse. Segundo a teoria deles, a obrigação moral objetiva na realidade não existe, mas, há ajustes adaptativos no fato de as pessoas pensarem que ela existe. Portanto, pensemos sobre a [Wilson e Ruse] menos, a teoria que resulta da deles quando eliminamos a parte, segundo a qual, na realidade, não existe nenhuma obrigação moral objetiva. A teoria resultante diz apenas que a moralidade – ou seja , a crença na obrigação objetiva de tratar os outros como gostaríamos que eles nos tratassem , junto com a tendência resultante de se comportar de acordo com essa crença pelo menos em certa medida – é um fenômeno adaptativo no nível de dos grupos e se tornou onipresente entre os seres humanos por meio da seleção de grupos. Essa teoria é incompatível com a crença cristã? Mais uma vez, isso não é claro: a teoria pouco acrescenta á antiga tese de que a moral é um bem social e que remonta á Roma antiga[é claro que acrescenta a tese de que a moral surgiu por meio de seleção de grupos; talvez você não considere esse acréscimo insignificante]. O mesmo vale para Wilson-menos, a teoria que resulta de David Sloan Wilson quando eliminamos a noção de que as crenças envolvidas na religião são fictícias. Wilson-menos consiste fundamentalmente na teori a de que a religião surge entre os seres humanos, ou torna onipresente entre eles, por meio da seleção de grupos, pois, é uma forma útil de controle social que envolve crenças de certa espécie (Assim, a teoria faz o mesmo elogio á religião que (Wilson e Ruse) menos faz á moralidade). Será essa teoria incompatível com a crença cristã? De novo, isso não é óbvio. Consideremos Atran: ele diz que a religião é “contrafactual”, o que significa , segundo entendo, que as crenças religiosas são (sempre? Tipicamente?)falsas. Atran-menos seria o resultado de eliminar de sua teoria a tese de que a crença religiosa é falsa. Atran-menos é incompatível com a crença cristã? Mais uma vez, isso não estar claro.
Essas teorias, portanto, realmente conflitam com a religião, mas apenas de maneira superficial. Conflitam com a religião como conflitaria com ela uma teoria resultante da conjunção da Física newtoniana com o ateísmo. Essa teoria entra em conflito com a religião , mas esse conflito certamente não é profundo.
Aqui, devemos fazer uma breve pausa para a seguinte pergunta: o que é exatamente, o conflito entre a religião e a ciência? Pode acontecer de uma religião ser incoerente em si mesma. Nesse caso, é claro que será incoerente com qualquer teoria científica, mas esse conflito não despertaria interesse. Suponhamos que haja uma teoria científica incompatível com a crença teísta, mas que somente uma pequena quantidade de cientista a endosse. Isso seria um exemplo de conflito entre a ciência e a religião? Ou será que, para que o conflito seja genuíno, a teoria em questão deva ser largamente aceita pelos cientistas? Mas, será mesmo que isso é o suficiente? O que dizer da relatividade geral e da mecânica quântica contemporânea? No contexto atual são incompatíveis, os físicos vem tentando desenvolver uma teoria quântica da gravidade para substituí-las, mas até agora não conseguiram [embora certas pessoas contemplem a teoria das cordas e suas sucessoras como potenciais fontes de reconciliação] as reivindicações da ciência atual, portanto contém uma contradição. A relatividade geral e a mecânica quântica são incompatíveis, logo, sua conjunção é incompatível com qualquer crença religiosa. Uma vez que ambas são amplamente aceitas pelos cientistas, acaso há aí um conflito entre a religião e a ciência? Se, houvesse, ele seria, na melhor das hipóteses, um conflito que também não despertaria interesse.
Portanto, nem todos os casos explícitos de conflito entre a religião e a ciência são genuínos. Além disso, o conflito pode acontecer de diversas maneiras. Pode haver uma teoria científica, por exemplo, que não seja explicitamente incompatível com a crença cristã, mas seja incompatível com a conjunção entre essa crença e algumas proposições que não possam ser rejeitadas de forma sistemática. Uma teoria pode ser formalmente compatível com a crença cristã, mas ainda assim extremamente improvável em relação a um conjunto de crenças ou uma estrutura noética semelhante a da maioria dos cristãos contemporâneos, ou dos cristãos no mundo ocidental, ou ainda, o que dá ao mesmo dos cristãos no mundo não ocidental. Tais cristãos normalmente creem em certas proposições F em razão de sua fé e em outras proposições R que são ou parecem ser, resoluções da razão, tais como a memória, a percepção, a intuição racional e assim por diante. Determinada teoria pode não ser improvável em relação a F e pode não ser improvável em relação a R, mas pode ser extremamente improvável em relação á conjunção de F e R e, portanto, em relação a uma estrutura noética que contenha F e R. Essa teoria poderia ser tão improvável em relação a referida estrutura noética que não seria nem mesmo candidata á crença propriamente dita. Um exemplo seria uma teoria que implicasse que, os seres humanos surgiram por seleção natural filtrando a variabilidade genética, então nenhum ser humano racional sacrifica conscientemente suas perspectivas reprodutiva em nome de promover o bem estar de outrem. isso não é incompatível com F e talvez não seja incompatível com as resoluções da razão. No, entanto, o cristão considerará extremamente improvável o consequente e, talvez, em virtude da razão, esteja inclinado a aceitar o antecedente. Essa teoria, portanto, seria incompatível com as estruturas noéticas desses cristãos, mesmo que não seja logicamente incoerente com a crença cristã, enquanto tal. Há ainda outras formas de conflitos...
Para examinar mais a fundo aquestão do conflito ou compatibilidade entre a crença cristã e essas teorias da psicologia evolucionista, investigaremos cuidadosamente uma delas : a teoria da religião de David Sloan. Essa teoria é o que se chama de uma “interpretação funcional” da religião. Ambos os termos merecem um comentário. Em primeiro lugar, Wilson diz explicitamente e muitas vezes que sua teoria é uma interpretação da religião. Isso é surpreendente; ninguém conceberia as leis de Newton ou a relatividade especial, por exemplo, como interpretações do que quer que seja. O que está envolvido no fato de a teoria ser uma interpretação? Presume-se que seja alguma espécie de compreensão; a intenção, é demonstrar que uma vez que você vê a religião como algo que desempenha a função atribuída pela teoria, compreende a religião ou, no mínimo, a compreende melhor. Compreende por que existe a religião, por que ela surge e permanece, para que ela serve, qual a sua função ou propósito. No caso específico da teoria de Wilson, a intenção é demonstrar que as religiões desempenham um importante papel na seleção de grupo. Muitas características da religião, como a natureza dos agentes sobrenaturais e das suas relações com os seres humanos, podem ser explicadas como adaptações projetadas para habilitar os grupos humanos a funcionar como unidades adaptativas. Uma das diferenças cruciasi entre a teoria de Wilson e as teorias de Atran e Boyer, portanto, é que, segundo essas duas, a crença religiosa não é de fato adaptativa. Wilson declara que seu objetivo é ver se as propriedades detalhadas da Igreja de Calvino podem ser interpretadas como uma adaptação ao ambiente e resume sua teoria como segue:
“Afirmo que o conhecimento dos detalhes [da Genebra de Calvino] corrobora claramente uma interpretação funcional do calvinismo no nível do grupo. O calvinismo é um sistema interligado com um propósito: unificar e coordenar um grupo de pessoas para alcançar um conjunto comum de objetivos por meio da ação coletiva. Talvez seja difícil com exatidão quais eram esses objetivos, mas dentre eles certamente estava incluído o que Durkhein chamava de uma utilidade secular – os bens e serviços básicos que todas as pessoas querem e dos quais necessitam, dentro e fora da religião”.
A intenção é demonstrar que o calvinismo é um sistema interligado que tem um propósito: ”unificar e coordenar um grupo de pessoas para alcançar objetivos comuns por meio de ação coletiva”. Isso soa como se, para ele, o calvinismo fosse um projeto ou atividade que as pessoas empreendem para alcançar os tais objetivos comuns, entre os quais se inclui no mínimo a utilidade secular de que ele fala. Se é isso que quis dizer, ele está errado, pois Calvino e os outros calvinistas não abraçaram, nem abraçam, o calvinismo em razão de uma utilidade secular qualquer. Na verdade, é duvidoso que o calvinismo, o catolicismo romano, o cristianismo em geral, ou ainda o judaísmo ou o islamismo, sejam atividades cujas intenções sejam apenas essas. São atividades humanas empreendidas em vista da realização de um objetivo? Qual é o propósito ou objetivo de acreditar em Deus? Ora, qual é o propósito ou objetivo de acreditar na existência de outras pessoas ou que sempre há um tempo passado? A resposta correta, seria de se pensar, é que crer em Deus, bem como crer que sempre há um tempo passado ou que existem outras pessoas , é algo que, em regra, não tem qualquer propósito ou objetivo. Não se acredita em Deus ou na existência de outras pessoas para se alcançar este ou aquele fim. Seria o mesmo que me perguntar qual é meu propósito ou objetivo ao acreditar que moro em Michigan ou que 7 + 5 = 12. Em certo sentido, essas atividades são intencionais, mas não são empreendidas para se realizar este ou aquele fim.
Você talvez responda que há mais no Cristianismo em geral e no calvinismo em particular do que a manutenção de certas crenças. Isso com certeza é verdade, pois há também o amor de Deus, a oração, a adoração, o rito, a cerimônia e a liturgia, por exemplo. Todas essas atividades são empreendidas intencionalmente. Mas, novamente, não está claro que haja um propósito para o qual amamos a Deus; por exemplo, amamos a Deus porque Ele é amável e, como tal, atrai ou suscita nosso amor. Os cristãos oram porque isso lhes parece correto ou porque Jesus Cristo os instruiu a orar e como orar. O mesmo vale para o culto. Quando o culto é como deve ser , não é algo que se faz para obter alguma finalidade exterior: é muito mais espontâneo e imediato, e participamos dele porque isso nos parece correto e apropriado.[é claro que pode acontecer de alguém se dedicar ao culto para agradar os pais, o cônjuge ou os filhos, mas, nesses casos, o culto não é como deve ser]. Este assunto é complexo e não é hora de entrar nele. O que está claro, no entanto, é que, geralmente, não há nenhum objetivo ou propósito envolvido na aceitação dos princípios centrais do calvinismo ou do cristianismo e mesmo que haja um propósito ou objetivo envolvidos no culto e na oração, certamente não é a obtenção dos bens materiais que Wilson menciona.
Mas, na verdade, Wilson não está querendo dizer que os próprios calvinistas se dedicam á prática do calvinismo para alcançar esses objetivos. Essa prática tem objetivos, claros, mas não são os objetivos ou propósitos visados pelas pessoas que a ela se dedicam. Os objetivos ou metas seriam proporcionados, de alguma modo, pela evolução. E é claro que esses objetivos ou metas não são os da evolução, ou da seleção natural; na concepção de Wilson, esses processos não tem objetivo ou meta alguma e não visam á implementação de determinado estado de coisas. Ainda assim, a intenção é demonstrar que algumas estruturas e processos que resultem da seleção natural têm propósitos adquiridos por meio de seu papel de maximizar e capacitação. Wilson pensa, sem dúvida, que o objetivo último do coração, por exemplo, é intensificar ou maximizar a capacidade orgânica; ao passo que seu objetivo imediato é bombear sangue para o corpo e para ele mesmo, cumprindo assim o primeiro objetivo ao cumprir seu último. O objetivo imediato do sistema imunológico é combater doenças e esse objetivo age em prol do seu objetivo último de maximizar a capacidade orgânica em geral. Se é que se pode falar sobre o propósito, o objetivo e a função própria de órgãos como o coração, o fígado ou o cérebro na ausência de um designer e fora do contexto do teísmo. ;minha opinião é que não se pode.
Suponhamos, portanto, que um coração, um fígado ou mesmo uma atividade como uma religião possam ter um propósito conferido pela seleção natural, mesmo que Deus não esteja orquestrando nem dirigindo esse processo. Segundo Wilson, o propósito da religião, ou pelo menos do calvinismo, é “unificar e coordenar um grupo de pessoas”. Esse propósito não é endossado pelos que praticam a religião; mesmo assim, de acordo com ele, esse é o propósito da própria religião. Nesse ponto, é elucidativo comparar as ideias de Wilson sobre a religião com as de Sigmund Freud, o grande mestre da suspeita. Na concepção de Freud, a religião - e, aqui, ele pensa especialmente nas religiões teístas – é uma ilusão no sentido técnico que ele dá a essa palavra. Para ele, esse sentido não implica a falsidade da crença teísta, embora Freud realmente ache que o teísmo é falso e que Deus não existe. Mesmo assim, as ilusões têm suas utilidades e até suas funções. A função ou propósito da crença religiosa é, na verdade, habilitar os crentes a seguirem vivendo neste mundo frio, hostil ou, no mínimo, indiferente em que nos encontramos. A intenção de Freud é demonstrar que a crença teísta nasce de um mecanismo psicológico que ele chama de “realização de desejos”; nesse caso, o desejo é o pai, não para a ação, mas para a crença. A natureza se levanta contra nó, fria, impiedosa, implacável, cega, para nossas realidades e desejos. Ela machuca, causa medo, dor, ansiedade e sofrimentos; e no fim, exige a nossa morte. Paralisados e atônitos, inventamos [inconscientemente, é claro] um pai celeste que excede nossos pais terrestres, tanto em bondade e benevolência quanto em poder e ciência. A alternativa seria mergulhar de vez na depressão, no estupor, na paralisia e, por fim, na morte.
Essa ilusão nos habilita a seguir em frente e sobreviver, portanto, contribui para nos capacitar. Essa tese freudiana é incompatível com a crença cristã? Posso aceitar a crença cristã e, ao mesmo tempo, aceitar a explicação que Freud lhe dá? Talvez. Não deixa de ser razoável que Deus nos faça ter consciência dele por meio de um mecanismo de realização de desejos. De acordo com Agostinho, “nossos corações estão inquietos até repousarmos em ti, Ó Deus”. Mas então pode ser que um dos meios pelos quais Deus induza em nós a consciência dele seja um processo de realização de desejos; queremos a tal ponto estar estar na presença de Deus, queremos a tal ponto sentir seu amor, saber que somos amados pelo Ser primeiro do universo, que simplesmente começamos a acreditar nisso. Não estou dizendo que é assim que acontecem; digo apenas que isso é possível e que não é incompatível com a crença cristã. A explicação de Freud, entretanto, vai além da simples noção de que começamos a acreditar em Deus por meio da realização de desejos, se seu pensamento se resumisse a isso, ele não teria motivo para dizer que a crença teísta é uma ilusão. O que mais Freud afirma? Que esse processo de realização de desejos não é orientado para a realidade, por assim dizer, é isso que faz da crença teísta uma ilusão. Nós, seres humano, dispomos de um grande número de processos, faculdades ou mecanismos de produção de crenças. Há a percepção, a memória, a intuição a priori, a credulidade, a indução e muito mais. Normalmente pensamos que que o objetivo dessas faculdades ou processos é a formação de crenças verdadeiras, que é para isso que elas servem e é esse seu propósito ou função. Há, no entanto, alguns processos cognitivos que não visam á produção de crenças verdadeiras, mas a alguma outra aspiração. Pode acontecer de nos lembrarmos de uma experiência dolorosa como se ela fosse menos dolorosa do que realmente foi. Segundo João 16.21, “a mulher, quando está para dar à luz, sente dores porque a sua hora chegou. Mas, depois de ter dado á luz a criança, já não se lembra do sofrimento, diante da alegria de ter trazido um ser humano ao mundo”. Você pode continuar acreditando que seu amigo é honesto mesmo que os fatos e um discernimento frio e objetivo lhe recomendem uma relutante mudança de ideia. Posso acreditar com muito mais intensidade que vou me recuperar de uma doença terrível do que me é avalizado pelas estatísticas de que eu tenha conhecimento. uma alpinista, diante de uma situação de vida ou morte, pode acreditar ser mais capaz de saltar sobre uma fenda do que lhe avalizam as evidências disponíveis.
Nesses casos não há disfunção cognitiva ou falha em seu funcionamento apropriado, mas a função dos processos em questão não parece ser a produção de crenças verdadeiras. Ao contrário, eles produzem crenças que, no contexto, são úteis de outra forma. E é exatamente esta a explicação de Freud. Um dos aspectos essenciais de sua teoria da crença teísta é que ela não é produzida por processos cognitivos que apontem para a verdade, mas por um processo com outro tipo de função. E, nesse ponto, o cristão ou qualquer teísta autêntico discordará dele. O teísta autêntico afirmará que Deus nos criou de forma que chegaremos ao conhecimento dele; e a função dos processos cognitivos , sejam eles quais forem, que normalmente produzem em nós a crença em Deus é nos proporcionar uma crença verdadeira. Por isso, mesmo que concorde com Freud na tese de que a crença teísta nasce da realização de desejos, o teísta autêntico acredita que esse caso particular de realização de desejos visa, sim, á verdade; é o mecanismo que Deus escolheu para nos levar a perceber que ele está presente e cuida de nós. Nesse ponto, terá de discordar de Freud. O mesmo vale para David Sloan Wilson. Ele sustenta que o propósito ou função do calvinismo e do cristianismo em geral é desenvolver vantagem adaptativas; um grupo que tenha uma religião desse tipo terá vantagem na competição com grupos que não tenham a religião ou algo semelhante. Assim a crença especificamente religiosa desempenha um papel importante. O papel de tal crença, segundo Wilson, não é refletir a realidade, mas participar da produção daquilo em que a religião resulta. Em suas palavras: “nosso desafio é interpretar o conceito de Deus e de seu relacionamento com as pessoas como um complexo sistema de crenças cuja finalidade é motivar os comportamentos listados”. Em um trecho muito interessante, Wilson propõe que a crença religiosa não é orientada para a realidade, mas – contrário de Freud e da maioria dos escritores inseridos no contexto da pesquisa científica da religião – Wilson a defende. Vale a pena citar esse trecho na íntegra:
Em primeiro lugar, boa parte da crença religiosa não é desvinculada da realidade. [...] Antes, é intimamente ligada á realidade, visto que motiva comportamentos adaptativos no mundo real – uma realização tremenda quando se leva em conta toda a complexidade necessária para que ocorra a ligação nesse sentido prático. É verdade que muitas crenças religiosas são falsas enquanto descrições literais do mundo real, mas simplesmente nos obriga a reconhecer duas formas de realismo: um realismo factual, baseado na correspondência literal, e um realismo prático, baseado na adaptabilidade do comportamento.
Em segundo lugar, muitas crenças religiosas não representam uma forma de fraqueza mental, mas, sim o funcionamento saudável da mente bem adaptada cultural e biologicamente [...] A adaptação é o critério ideal com o qual se deve julgar a racionalidade, junto com as outras formas de pensamentos. Os biólogos evolucionistas devem ser rápidos em compreender esse ponto, pois eles consideram que a mente adaptada é, em última análise, um órgão de sobrevivência e reprodução [...] entre nossos antepassados não havia realistas factuais desligados da realidade prática.
Essa teoria da religião, portanto, é semelhante á de Freud já que, como Freud, Wilson entende que os processos cognitivos que produzem a crença religiosa não visam á produção de crenças verdadeiras, mas de crenças adaptativas mediante a motivação de comportamento adaptativos. A crença religiosa em geral e a cristã e calvinista em particular originam-se de processos de produção de crenças direcionadas não para a produção de crenças verdadeiras, e sim para a produção de crenças que motivem aquele tipo de comportamento. Neste ponto, quem aceita a crença cristã será obrigado a discordar, como fez com Freud. Se a crença cristã é realmente verdadeira – como é natural que o cristão pense - , ela será produzida em nós por processos que Deus concebeu com a finalidade de nos habilitar a ver a verdade das “coisas grandiosas do Evangelho”, como Jonathan Edwards as chama. O cristão não duvidará de que esses processos envolvem de forma emblemática o que Calvino chama de “testemunho interno do Espírito Santo” e o que Tomás de Aquino chama de “instigação interna do Espírito Santo”. E esses processos, na perspectiva do cristão, são direcionados para a verdade: são direcionados para nos habilitar a formar crenças verdadeiras acerca de que Deus fez e da forma de salvação. Por isso, existe de fato um conflito entre a teoria wilsoniana da religião e a crença cristã.
Trad. Marcelo Cipolla
VIA LEONARDO MELO
FONTE.
1. PLANTINGA, Alvin. Ciência, Religião e Naturalismo – onde está o conflito? S. Paulo. 2018. Editora Vida Nova. 318 pg. pg. 129-142.
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