quarta-feira, 7 de abril de 2021

“Para Que Ninguém Caia”: Uma Perspectiva do Conhecimento Médio sobre a Perseverança e as Advertências Apostólicas

 

Dr. William Lane Craig

 

Partidários da doutrina da perseverança dos santos caracteristicamente sustentam que, uma vez que uma pessoa seja verdadeiramente regenerada, não meramente ela não irá apostatar, mas que ela literalmente não pode decair da graça e perder-se. Comumente se pensa que esta conclusão segue do caráter irresistível e da eficácia intrínseca da graça de Deus: uma pessoa que foi regenerada pelo Espírito Santo é tão dominada pelo amor, poder e majestade de Deus, que ela simplesmente se torna incapaz de cometer apostasia. Por essa razão, todo aquele que através da operação soberana de Deus tem chegado ao conhecimento de Deus irá perseverar até o fim e ser salvo.

 

Entretanto, esta doutrina se coloca incomodamente com numerosas passagens na Escritura que advertem os fiéis do perigo da apostasia e descrevem os terríveis fins daqueles que caem da graça (por exemplo, Rm 11.17-24; 1Co 9.27; Gl 5.4; Cl 1.23; 1Ts 3.5; 1Tm 1.19, 20; 2Tm 2.17, 18; Tg 5.19, 20; 2Pe 2.20-22; 1Jo 5.16). O escritor da Epístola aos Hebreus, cujos leitores estavam tentados a voltar ao Judaísmo sob a pressão da perseguição, é especialmente explícito, alertando e exortando seus leitores contra o perigo da apostasia (6.1-8; 10.26-31), “para que ninguém caia” no mesmo exemplo de desobediência (4.11).

 

Embora alguns partidários da doutrina da perseverança têm tentado minimizar seu significado explicando tais passagens, primeiramente, sustentando que elas dizem respeito a pessoas que nunca foram verdadeiramente regeneradas,[1] tal alegação parece altamente duvidosa em virtude da linguagem destas admoestações, que parecem claramente ser direcionadas a crentes regenerados.[2] À luz deste fato, os defensores da perseverança que consideram estas passagens como sérias advertências aos cristãos têm oferecido uma outra explicação da compatibilidade da doutrina da perseverança e das advertências contra a apostasia: as próprias advertências são o meio pelo qual Deus preserva os eleitos.[3] Berkhof, por exemplo, observa,

 

Há advertências contra a apostasia que pareceriam completamente sem razão de ser, se o crente não pudesse cair... Mas estas advertências consideram a questão toda a partir do lado do homem e seu propósito é sério. Elas incitam os crentes ao exame de si mesmos e servem de instrumento para mantê-los no caminho da perseverança. Não provam que alguns dos seus destinatários irão apostatar da fé, mas simplesmente que o uso dos meios é necessário para impedi-los de cometer este pecado.[4]

 

Advertindo os crentes contra a apostasia, Deus assegura que eles não irão cometer apostasia.

 

Esta engenhosa resposta levanta toda sorte de questões intrigantes. Por exemplo, se a vontade do crente é tão dominada pela graça de Deus que ele de fato é incapaz de apostatar, então por que proferir tais advertências? Elas não seriam inteiramente supérfluas? Se, por outro lado, são as próprias advertências que efetuam a perseverança, então não é verdadeiro que o crente é capaz de apostatar, mesmo que, por causa das advertências, ele não irá se apostatar? Pois advertências não parecem agir como causas eficientes sobre a vontade, forçando alguém a agir de uma certa maneira; elas podem ser desobedecidas. Contraste, por exemplo, o fato de eu falar inglês como resultado de ser criado por pais de língua inglesa: eu estou determinado a falar inglês; eu não posso repentinamente escolher começar a falar vietnamita. Eu não tenho liberdade para simplesmente escolher qual língua falo. Agora, no caso das advertências, se elas são severas o suficiente e eu sou prudente, então certamente darei atenção a elas. Mas em virtude de ser advertido, não penso que queiramos dizer que minha liberdade tem, por meio disso, sido removida; está ainda dentro de minha capacidade desconsiderar as advertências, e se sou imprudente o bastante, talvez farei exatamente isso. Se então é meramente as advertências que garantem a perseverança, parece que o crente é de fato livre para desobedecê-las e apostatar, ainda que ele não irá. Eu assumirei, portanto, que as advertências não removem a liberdade humana.

 

O que parece estar em jogo na pergunta que estou levantando é uma proposição contrária aos fatos como

 

1. Se as advertências não tivessem sido dadas, os crentes teriam apostatado.

 

O defensor da perseverança considera (1) como verdadeiro ou não? Se ele acredita que (1) é verdadeiro, então parece claro que os crentes são de fato capazes de apostatar, pois nos mais próximos mundos possíveis em que o antecedente de (1) é verdadeiro, eles apostatam.

 

Agora, o defensor da perseverança poderia insistir que, mesmo se (1) for verdadeiro, todavia, dado o fato que os crentes têm, de fato, sido advertidos, eles não podem apostatar-se. Mas esta resposta comete um erro que é prevalecente nas discussões de pré-conhecimento divino e liberdade humana, a saber, confundir a necessidade de uma proposição in sensu composito com sua necessidade in sensu diviso. Proponentes do fatalismo teológico muitas vezes deixam de distinguir estes dois sentidos ao considerar uma proposição como

 

2. O que quer que seja pré-conhecido por Deus deve ocorrer, o que eles consideram exigir uma negação da liberdade humana.

 

Mas (2) in sensu composito significa meramente

 

2*. Necessariamente, qualquer evento que seja pré-conhecido por Deus irá ocorrer.

 

Neste caso, o que é necessário não é a ocorrência de qualquer evento per se, mas o estado composto das coisas consistindo do pré-conhecimento de Deus do evento e a ocorrência do evento. Toda a combinação é necessária, mas não os pares em particular. Por essa razão, esta necessidade in sensu composito de forma alguma é adversa à liberdade humana. Por outro lado, (2) in sensu diviso significa

 

2**. Necessariamente, qualquer evento, que seja pré-conhecido por Deus, irá ocorrer.

 

Isto não exige uma negação da liberdade humana, visto que o que é necessário é qualquer evento. Neste caso, não temos uma mera necessidade composta, mas um dos pares é afirmado ser necessário. O oponente do fatalismo teológico irá alegar que (2) quando entendido in sensu diviso, isto é, como (2**), é falso, mas quando entendido in sensu composito, isto é, como (2*), é verdadeiro, e que por isso o fatalismo teológico falha.

 

Similarmente, no caso da perseverança, se (1) é verdadeiro, então a proposição

 

3. Qualquer crente que foi advertido por Deus não pode apostatar-se

 

É no melhor dos casos verdadeiro in sensu composito, em outras palavras, é verdadeiro que

 

3*. Necessariamente, um crente que foi advertido por Deus não irá apostatar-se.

 

Mas de acordo com (3*) não é impossível que o crente cometa apostasia, o que é impossível é a combinação da advertência de Deus a ele e sua apostasia. A necessidade afirmada por (3*) é atribuída somente ao estado composto de coisas consistindo da advertência de Deus a um crente e a sua permanência na fidelidade. Mas esta necessidade composta de forma alguma remove a liberdade ou capacidade do crente de apostatar. Por outro lado, (3) é falso in sensu diviso, em outras palavras, é falso que

 

3**. Necessariamente, um crente, que foi alertado por Deus, não irá apostatar-se.

 

Pois se (1) for verdadeiro, então ainda que seja impossível ao crente tanto ser advertido quanto apostatar-se, é possível que ele cometa apostasia. Por essa razão, se (1) for verdadeiro, então a doutrina da perseverança classicamente entendida é falsa: o crente pode apostatar-se, mas necessariamente, se ele foi advertido por Deus, ele não irá apostatar-se.

 

Mas então suponha que o defensor da perseverança diga que (1) é falso, isto é, que o oposto de (1) é verdadeiro.[5] Nesse caso, as advertências pareceriam ser supérfluas. Pois se a graça de Deus é intrinsecamente eficaz de modo que o crente não pode apostatar-se, então é causalmente impossível que o crente cometa apostasia. Deus faz com que ele persevere na graça. Visto nesta luz, a doutrina da perseverança é um termo errôneo; pois não é na verdade perseverança, mas preservação que está em discussão aqui. O ponto crucial é que Deus preserva o crente no estado de graça causalmente agindo sobre ele, e por isso, é causalmente impossível que ele cometa apostasia, e dessa forma ele persevera. Mas se sua apostasia é causalmente impossível, então nenhuma advertência é necessária e as admoestações da Escritura perdem toda a seriedade.

 

O defensor da perseverança pode se libertar deste dilema, entretanto. Ele poderia sustentar que (1) é falso, mas argumentar que a razão de ser falso não é porque é causalmente impossível que o crente cometa apostasia, mas porque

 

4. Se as advertências não tivessem sido dadas, então Deus teria proporcionado algum outro meio de garantir que o crente perseveraria na graça.

 

Ele poderia argumentar que, devido à fidelidade e amor de Deus pelos eleitos, é uma impossibilidade completamente lógica que um crente cometa apostasia, porque em todo mundo possível em que um crente existe, Deus proporciona algum meio de assegurar sua perseverança. Visto que simplesmente não há mundos possíveis em que crentes caiam da graça, os mundos mais próximos em que o antecedente de (1) é verdadeiro deve ser mundos em que os crentes perseverem. As razões deles perseverarem podem ser numerosas, e não há razão para pensar que os crentes em qualquer mundo são causalmente constrangidos a perseverar. Nem pode alguém inferir da falsidade de (1) ou da verdade de (4) que as advertências bíblicas não são os meios pelos quais Deus garante no mundo real que os crentes perseverem.

 

Mas o problema com tal resposta é que ela claramente não distingue a doutrina clássica da perseverança de uma versão molinista dessa doutrina.[6] O cerne da questão se encontra na eficácia da graça de Deus: a graça de Deus é intrinsecamente eficaz ou extrinsecamente eficaz? De acordo com a doutrina clássica da perseverança, a graça de Deus é intrinsecamente eficaz em produzir seu resultado, o que equivale a dizer, a graça infalivelmente produz seu efeito. Mas de acordo com Molina, a graça divina é extrinsecamente eficaz, o que equivale a dizer, ela se torna eficaz quando se une à livre cooperação da vontade humana. Na opinião de Molina, Deus dá graça suficiente para a salvação a todos os homens, mas ela se torna eficaz somente nas vidas daqueles que respondem afirmativamente a ela.

 

Agora, dentro do Molinismo, existe uma escola chamada Congruísmo que concordaria um tanto apropriadamente com (4) e até com a impossibilidade claramente lógica de um crente cair da graça e, todavia, insistir que tal argumentação de forma alguma é incompatível com as asserções de que o crente livremente persevera e até que se encontra dentro da capacidade do crente renunciar a graça de Deus e apostatar-se.[7] O Congruísmo, como representado, por exemplo, por Suarez, defende que logicamente antes do decreto de Deus da criação, Deus livremente escolheu certos indivíduos para obterem a bem-aventurança. Por meio de Seu conhecimento médio, Deus sabia quais dons da graça seriam eficazes em extrair a resposta afirmativa livre destas vontades humanas. Por essa razão, Ele decretou criar um mundo contendo estes indivíduos e para lhes conferir esses dons da graça aos quais Ele sabia que livremente responderiam. Estes dons são extrinsecamente, não intrinsecamente, eficazes, visto que a vontade humana é livre para rejeitar tal graça, mas visto que tais dons são selecionados de acordo com o conhecimento médio de Deus, eles são congruentes com cada vontade criada, e por isso são infalivelmente deparados com uma resposta afirmativa. Deus sabe por meio de Seu conhecimento médio que ainda que o indivíduo poderia rejeitar Seus dons particulares da graça, de fato ele não iria rejeitá-los. Suarez parece sugerir que em qualquer mundo logicamente possível em que um indivíduo eleito existe, Deus concede, baseado em Seu conhecimento médio, graça congruente sobre essa pessoa, que assegura sua livre resposta. Aplicado à questão da perseverança, o Congruísmo poderia sustentar que Deus, por meio de Seu conhecimento médio, sabe exatamente quais dons da graça conceder em qualquer mundo possível à vontade de cada crente de modo a extrair uma resposta contínua de fé dessa pessoa. Conseqüentemente, todo crente irá perseverar até o fim em qualquer mundo que ele exista, ainda que ele seja livre e se encontra dentro de sua capacidade rejeitar quaisquer dons particulares da graça de Deus.

 

Tal doutrina congruísta da perseverança se mostra muito paradoxal porque, ainda que o crente livremente persevera e é capaz de rejeitar a graça de Deus, todavia não há nenhum mundo logicamente possível em que ele cometa apostasia. Tal doutrina é coerente?

 

Parece coerente, penso, para o congruísta manter que o crente livremente persevera ainda que ele não seja livre para apostatar-se. Que o crente livremente persevera é evidente do fato que, para qualquer graça congruente particular concedida a ele, há mundos em que o crente rejeita essa graça. Mas por meio de Seu conhecimento médio, Deus em cada um desses mundos oferece ao crente algum outro dom da graça ao qual Deus sabe que o crente livremente responderá. Então, mesmo que não haja mundos possíveis nos quais um crente cometa apostasia, não obstante os crentes livremente perseveram. O ponto crucial, mais uma vez, é que a graça de Deus é somente extrinsecamente eficaz, e por isso a liberdade do crente não é causalmente constrangida pela ação de Deus.[8]

 

Mas o crente é livre para abandonar a fé e apostatar-se? Por outro lado, não pareceria, visto que é uma impossibilidade completamente lógica que ele cometa apostasia. Certamente se um agente é livre para fazer alguma ação A, então deve ser uma possibilidade completamente lógica para ele fazer A! Mas por outro lado, nada causalmente o constrange em qualquer mundo a perseverar, de modo que a impossibilidade completamente lógica de sua apostasia depende de seu livre-arbítrio. Então como ele não pode ser livre? Parte do problema aqui é que a introdução de um Deus anselmiano na esfera da modalidade completamente lógica embaralha nossas percepções do que deve ser considerado como uma possibilidade completamente lógica ou uma necessidade. Por exemplo, parece intuitivamente óbvio que um mundo possível existe no qual coelhos são a forma mais alta de vida que existem em constante miséria. Mas como Thomas Morris observa, tal mundo é de fato uma impossibilidade completamente lógica porque seria inconsistente com um Deus anselmiano. Um ser maximamente perfeito não criaria uma situação de sofrimento constante como esse. Dessa forma, “...mundos concebíveis são (ao menos parcialmente) aqueles que, caso, per impossibile, o Deus anselmiano não existisse, seriam possíveis.”[9] Similarmente, nesse caso à disposição temos o que parece intuitivamente ser um mundo logicamente possível (um no qual os crentes cometem apostasia), mas que se mostra ser completamente impossível porque Deus em Sua bondade essencial sempre age de modo a ganhar a resposta afirmativa livre dos crentes à Sua graça. Na raiz do paradoxo aqui parece estar uma deficiência na moderna classe de teoria das condições da verdade das proposições contrafactuais de Stalnaker-Lewis, a saber, a incapacidade da teoria de lidar com contrafatos que têm antecedentes impossíveis. Pois o que realmente queremos saber não é se (1) é verdade, mas se é verdadeiro que

 

1*. Se as advertências não tivessem sido dadas e Deus não tivesse proporcionado dons da graça, os crentes teriam cometido apostasia.

 

O problema é que na opinião que estamos atualmente considerando, o antecedente é uma impossibilidade completamente lógica porque Deus é bom demais para falhar em proporcionar dons adicionais da graça. Conseqüentemente, tendo um antecedente impossível, (1*) é vagamente verdadeiro, mas dessa forma é sua contraditória, visto que não há mundos que permitam antecedentes. Mas intuitivamente queríamos dizer que (1*) é falso se a graça de Deus é intrinsecamente eficaz e não-vagamente verdadeiro se Sua graça é extrinsecamente eficaz. Conseqüentemente, o congruísta estaria justificado em sustentar a liberdade do crente para apostatar ainda que não haja mundos em que ele exerça essa liberdade. Esta conclusão parece exibir a verdade da observação de Plantinga que o emprego de mundos possíveis não é adequado para lançar muita luz sobre a opinião de “dentro da capacidade de alguém.”[10]

 

Mas o congruísta está confinado em qualquer caso à posição de que não há mundos possíveis nos quais os crentes cometam apostasia? Uma cuidadosa reflexão sugere que não. Pois o conceito da graça congruente não significa graça que não pode ser rejeitada pela vontade criada, mas graça que é tão adequada à vontade criada que se for oferecida, ela não seria rejeitada. Conseqüentemente, mundos possíveis existem nos quais a graça que de fato seria congruente e eficaz, fosse ela oferecida, é rejeitada e, por isso, ineficaz. Nem precisa tais mundos ser mundos nos quais alguma outra graça oferecida por Deus seja congruente. O congruísta pode sustentar que em alguns mundos como esse toda graça oferecida por Deus é rejeitada pela vontade criada. A integridade da bondade e fidelidade de Deus ao crente é conservada em tais mundos porque Ele oferece ao crente a mais graciosa ajuda que Ele pode, mas o crente apóstata rejeita todo dom da graça que lhe é oferecido. Nem tal possibilidade compromete a doutrina da perseverança, visto que o congruísta irá sustentar que tais mundos não são factíveis ou realizáveis por Deus porque o crente de fato responderia a tais graciosas ajudas fossem elas na verdade oferecidas.[11] Em todo mundo realizável por Deus, Suas várias graças são congruentes e eficazes; por essa razão, não há nenhum mundo realizável em que os crentes cometam apostasia e se percam. Isto pode parecer estranho à primeira vista porque a palavra “factível,” que normalmente é usada para descrever a série de mundos realizáveis por Deus, tende a carregar com ela a conotação de que mundos não factíveis para Deus são mundos que Ele gostaria de realizar (como mundos nos quais todas as criaturas livremente sempre reprimem o pecado), mas não pode porque as vontades humanas deixam de cooperar. Mas no caso da perseverança, Deus sem dúvida alguma está satisfeito que mundos nos quais os crentes cometam apostasias são impraticáveis para Ele, e isso porque as vontades humanas sempre cooperam com Sua graça. Por isso, uma doutrina congruísta da perseverança não exige que não haja mundos logicamente possíveis nos quais os crentes caiam da graça.

 

Nesta luz (4) pode ser mais claramente expressado como

 

4.’ Se as advertências não tivessem sido dadas, Deus teria proporcionado outros dons da graça e o crente teria respondido livremente a estes.

 

O congruísta considera (4’) como verdadeiro, mas acredita que haja mundos possíveis nos quais o crente rejeita todos os outros dons da graça divina oferecidos a ele; ele acrescenta meramente que todos esses mundos são impraticáveis para Deus. Está por essa razão claro que enquanto todos os crentes verdadeiramente regenerados irão perseverar até o fim, não obstante eles são livres para cometer apostasia.

 

Portanto, se o defensor clássico da perseverança for distinguir sua opinião de uma perspectiva molinista, ele deve fazer mais do que insistir na verdade de (4). Pois o congruísta também irá insistir que os crentes sempre perseveram na graça e que se as advertências bíblicas não fossem dadas, Deus teria oferecido aos crentes outros dons da graça que Ele sabia ser congruentes; mas ele também insistirá que o crente é inteiramente livre para rejeitar a graça de Deus e apostatar-se. O defensor clássico da perseverança deve, parece, se ele deve distinguir sua opinião do Molinismo, se ater à eficácia intrínseca da graça de Deus e, conseqüentemente, à impossibilidade causal da apostasia do crente. Mas nesse caso, as advertências da Escritura contra o perigo de apostasia parecem se tornar fúteis e artificiais. Talvez o melhor caminho para o defensor clássico tomar seja adotar uma espécie de ocasionalismo admonitório: que na ocasião de alertar o crente contra a apostasia Deus infunde Sua graça intrinsecamente eficaz para a perseverança.

 

Manter que as advertências da Escritura são os meios pelos quais Deus garante a perseverança dos eleitos é de fato adotar uma perspectiva molinista. Essa perspectiva não precisa ser tão radical como o Congruísmo. O molinista que se atém à perseverança dos santos pode considerar (4) e (4’) como falsos porque, em contradistinção ao congruísta, ele acredita que há mundos realizáveis nos quais os crentes rejeitam a graça de Deus e cometam apostasia. Em outras palavras, tais mundos não são meramente possíveis logicamente, mas são factíveis para Deus. Mas o molinista que adere à perseverança irá acrescentar simplesmente que Deus não decretaria realizar quaisquer destes mundos, ou até mais comedidamente, que Deus de fato não decretou realizar tal mundo. No mundo que Ele escolheu realizar, os crentes sempre perseveram na fé. Talvez as advertências na Escritura sejam os meios pelos quais Deus debilmente realiza sua perseverança. Em outras palavras, no momento logicamente anterior à criação, Deus por meio de Seu conhecimento médio sabia quem livremente receberia Cristo como Salvador e que espécies de advertências contra a apostasia seriam extrinsecamente eficazes em impedi-los de apostatarem-se. Portanto, Ele decretou criar para ser salvas somente aquelas pessoas que Ele sabia que livremente responderiam às Suas advertências e dessa forma perseverariam, e Ele simultaneamente decretou proporcionar tais advertências. Por causa disso o crente certamente irá perseverar e todavia ele age dessa forma livremente, considerando seriamente as advertências que Deus lhe tem dado.

 

Obviamente, o Molinismo não infere a doutrina da perseverança dos santos. O defensor do conhecimento médio poderia sustentar que logicamente anterior à criação Deus sabia que não haveria nenhum mundo factível para Ele no qual todos os crentes perseverariam ou que, se houvesse, tais mundos tinham deficiências predominantes em outros aspectos. Portanto, as advertências da Escritura não garantem a perseverança dos crentes, pois os crentes podem e as ignoram. Todavia, não me parece que aqueles que interpretam as advertências da Escritura como os meios pelos quais Deus assegura a perseverança dos santos abandonaram o entendimento clássico dessa doutrina e adotaram em seu lugar uma perspectiva do conhecimento médio sobre a perseverança.

 

Tradução: Paulo Cesar Antunes

 

 

_________________________

Notas:

[1] Esta parece ter sido a posição de João Calvino Institutes of the Christian Religion 3.3.21,24; 4.1.10; 4.24.6-11. VejatambémseuscomentáriossobreHb 6 e 10 emJoão Calvino, Calvin's Commentaries, vol. 12: The Epistle of Paul the Apostle to the Hebrews and the First and Second Epistles of St. Peter, trad. Walter B. Johnston (Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans, 1963).

 

[2]Veja I. Howard Marshall, Kept by the Power of God (Minneapolis: Bethany Fellowship, 1983).

 

[3]Veja, porexemplo, Judy Gundry-Wolf, “Perseverance and Falling Away in Paul's Thought” (D. Theol. dissertation, Eberhardt-Karls-UniversitätTübingen, 1987); para umacrítica, veja I. H. Marshall, “Election and Calling to Salvation in 1 and 2 Thessalonians,” ensaio lido no 38º Colloquium BiblicumLovaniense, 1988, a serpublicadonaBibliotheca EphemeridumTheologicarumLovaniensium.

 

[4] Louis Berkhof, Teologia Sistemática (Campinas, SP: Luz Para o Caminho, 3ª. ed., 1994), p. 552.

 

[5] Isto é, que se as advertências não tivessem sido dadas, os crentes não teriam se apostatado. O defensor da perseverança poderia dizer que ambos (1) e seu oposto são falsos, mas eu considero esta posição como improvável. Veja minha crítica desta posição em Divine Foreknowledge and Human Freedom (Leiden: E.J. Brill, 1990), cap. 13.

 

[6]Veja Luis Molina, On Divine Foreknowledge: Part IV of “De LiberiArbitrii cum Gratia Donis, Praescientia, Providentia, Praedestinatione et Reprobatione Concordia,” trad. com Introdução e Notas de Alfred J. Freddoso (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1988); William Lane Craig, The Problem of Divine Foreknowledge and Future Contingents from Aristotle to Suarez, Brill's Studies in Intellectual History 7 (Leiden: E.J. Brill, 1988), caps. 7, 8; Dictionnaire de théologiecatholique, ed. A. Vacant, E. Mangenot, e E. Amann (Paris: LibrairieLetouzey et ane, 1929), s.v. “Molinisme,” de E. Vansteenberghe, vol. 10, pt. 2, cols. 2094-2187.

 

[7] Veja Francisco Suarez, Opera omnia, vol. 10: Appendix prior: Tractatus de vera intelligentia auxilii efficacis, ejusque concordia cum libertate voluntarii consensus 1, 12, 13, 14; idem De concursu et auxlio Dei 3.6, 14, 17, 20; Craig, Divine Foreknowledge and Future Contingents, cap. 8; Dictionnaire de théologie catholique, s.v. “Congruisme,” de H. Quillet, vol. 3, pt. 1, cols. 1120-38.

 

[8] Veja as muito estimulantes observações de Thomas V. Morris, The Logic of God Incarnate (Ithaca, N. Y.: Cornell University Press, 1986), pp. 151-52. Ele imagina um caso no qual o cérebro de Jones é ligado com elétrodos de tal forma que se ele tentasse escolher diferentemente do que ele escolhe, os elétrodos seriam ativados e impediriam essa escolha. “Ele não poderia possivelmente ter feito de outra forma, mas, para falar a verdade, nada à parte de suas próprias decisões o efetuou aquilo que ele fez como ele fez” (Ibid., p. 152). Substitua elétrodos pela graça congruente de Deus e vemos que Jones livremente persevera ainda que não haja mundos nos quais ele não persevera. De fato, visto que a graça de Deus é, diferente de elétrodos, somente extrinsecamente eficazes, a livre perseverança de Jones é tanto mais evidente.

 

[9] Morris, Logic of God Incarnate, pp. 112-13.

 

[10] Alvin Plantinga, “Ockham’s Way Out,” Faith and Philosophy 3 (1986): 265.

 

[11]Sobre a noção de mundosfactíveis para Deus, veja Thomas P. Flint, “The Problem of Divine Freedom,” American Philosophical Quarterly 20 (1983): 257.

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