domingo, 23 de maio de 2021

A Criação


Por Tremper Longmann III 


Os seres humanos sempre foram curiosos sobre as origens. De onde veio o mundo? O que explica nossa existência? Assim, não é de todo surpreendente que tenhamos relatos da criação do cosmos e dos seres humanos de muitas culturas antigas. Neste artigo, estamos particularmente interessados no relato bíblico e em outras composições antigas da criação do Oriente Próximo. O nosso interesse no antigo Oriente Próximo (AOP) deve-se ao fato de ele nos ajudar a recuperar o antigo contexto das histórias bíblicas. A ciência moderna também explora questões relativas às origens do cosmos e da humanidade, o que faz com que alguns vejam isso como uma ameaça às explicações bíblicas. Este artigo descreverá os diferentes relatos da criação na Bíblia, no AOP e na ciência moderna em termos gerais, e considerará a questão da relação entre eles. A Bíblia inicia-se com dois relatos discretos da criação (Gênesis 1:1—2:4a; 2:4b-25). A primeira história enfoca a criação do cosmos e tudo que nele existe. É uma questão de debate se o texto fala ou não da criação da matéria (creatio ex nihilo) ou começa a história da criação com matéria sem forma já presente (Copan e Craig, 2004). O hebraico de Gênesis 1:1-2 não é claro sobre esse ponto, e diferentes traduções suportam diferentes visões (algumas favorecem a criação do nada, e outras, a presença da matéria no início). O livro de Hebreus deixa o ensinamento da criação a partir do nada explícito (Hebreus 11:3). Pode ser que os leitores originais de Gênesis não estivessem interessados na questão da origem da matéria (e presumiram que Deus a criou), embora o Novo Testamento tenha sido escrito em um contexto greco-romano que era interessado na questão. 

A criação do cosmos e da humanidade ao longo de um período de seis dias pode não se concentrar na criação material, mas em Deus tornar o cosmos funcional para o ápice de sua criação, a humanidade (Walton, 2011). A natureza dos dias da criação também é uma questão de controvérsia. Depois que a criação foi completada e dita ser “muito boa” (Gênesis 1:31), Deus cessou suas atividades, o que é representado na semana da criação como o primeiro sábado.

A segunda história da criação concentra-se na criação da humanidade. Alguns leem-na como uma visão ampliada do sexto dia (Collins, 2003), outros como uma história completamente separada. Existem aparentes diferenças de sequência entre as duas histórias (a criação da vegetação precede ou segue a criação de seres humanos?). Na segunda história da criação, o homem é criado primeiro e a mulher depois. O debate gira em torno da descrição da criação de Adão e Eva, se a narrativa descreve literalmente como ela aconteceu (do pó e do sopro de Deus [Gênesis 2:7] e do lado/costela do homem [Gênesis 2:21-23]). Mas seja literal ou não, não falta o significado simbólico dos atos. O primeiro homem criado a partir do pó mostra que ele é parte da criação, mas o sopro de Deus indica que a humanidade tem um relacionamento especial com Deus. A criação da mulher mostra que seu relacionamento com o homem é de reciprocidade e igualdade. O relato da criação bíblica não é apenas registrado para dizer aos seres humanos que a sua existência é o resultado da atividade criativa de Deus, mas também para informar assuntos como gênero, sexualidade, casamento, sábado e trabalho.

Os capítulos 1—2 de Gênesis podem ser o relato mais importante da criação na Bíblia, mas eles não estão sozinhos. Um número de salmos (p. ex., 8, 19, 24, 33, 74, 104, 136), o livro de Provérbios (3:19,20; 8:22-31), e uma passagem em Jó (38:4-11), bem como textos no Novo Testamento (João 1:1-5; Romanos 1:18-20; Colossenses 1:15-20) são exemplos de outras passagens que descrevem a criação do cosmos e/ou da humanidade por Deus. A variação de imagens usadas para narrar a criação divina é impressionante, levantando a questão se os autores bíblicos pretendiam usar qualquer uma dessas descrições como representações literais de como Deus criou o mundo e os seres humanos. 

Os vizinhos de Israel também tiveram relatos de criação que fornecem os antecedentes para a leitura da história bíblica. Embora existam relatos de criação na Suméria (p. ex., o Gênesis de Eridu, Louvor à enxada, Enki e Ninhursag) e no Egito (A pedra de Shabaka), as histórias da criação mais relevantes para os textos bíblicos estão escritas em acadiano (a língua dos assírios e babilônios) e ugarítico (o idioma dos cananeus). Os dois textos acadianos mais importantes da criação são Enuma Elish e Atrahasis (ver entradas para detalhes e resumos de enredo), e o texto ugarítico mais importante é o Épico de Baal. Tanto Enuma Elish como o Épico de Baal retratam a criação como resultado de uma batalha entre o deus criador (Marduque/Baal) e o/a deus(a) do mar (Tiamat/Yam). Depois que o mar é derrotado, o criador molda a carcaça do corpo deste em um cosmos funcional. Em Enuma Elish e Atrahasis, os seres humanos são criados a partir de argila e sangue e/ou cuspe dos deuses, uma semelhança interessante com o fato de Adão ser criado a partir de um componente terreno, poeira, e divino, o sopro de Deus (Gênesis 2:7).

A ciência moderna faz perguntas sobre as origens do cosmos e da humanidade. A maioria dos cientistas, hoje, acredita que o cosmos começou com uma grande explosão (o big bang), o que levou à formação final do universo por meio da evolução estelar e planetária. Quando se trata da humanidade, as evidências persuadem a grande maioria dos biólogos e outros cientistas quanto ao surgimento da humanidade mediante um processo evolutivo, mais recentemente compartilhando uma ancestralidade comum com primatas. 

A natureza da relação entre a Bíblia e a ciência, quando se trata da criação, é muito contestada. Os criacionistas da Terra jovem e antiga (ciência da criação) se voltam primeiro para a Bíblia e, em regra, contestam provas contrárias da comunidade científica. Outros acreditam que a ciência aniquila o relato bíblico e consideram-se ateístas (novo ateísmo). Outros, ainda, acreditam que a Bíblia, quando lida à luz da ciência moderna, revela a percepção do estado real do mundo, tal como é atualmente entendido pelos cientistas (concordismo; razões para acreditar). Outros, ainda, acreditam que a ciência não pode explicar tudo por causas naturais, e, nessas lacunas de explicação, veem a mão de Deus em ação (design inteligente). Por fim, outros veem a ciência e a Bíblia tratando de questões completamente diferentes, esta a respeito de realidades físicas, aquela, de realidades metafísicas; o que é conhecido como magistérios não interferentes (non-overlapping magisteria ou NOMA, em inglês). Uma variação deste último sugere que a religião fornece o quadro conceitual dentro do qual a ciência opera, mas que a religião e a ciência são “parceiros na teorização”, tendo “competências diferentes” para responder às mesmas questões (Van Till em Carlson, 2000, 126, 195). Qualquer reconciliação cristã da relação entre a Bíblia e a ciência concluirá, em última análise, que as duas possuem o mesmo autor e fornecem um panorama consistente.


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Fonte: 


LONGMAN III, Tremper. A Criação. Em COPAN, Paul [et all] (organizadores). Dicionário de cristianismo e ciência: obra de referência definitiva para a interseção entre fé cristã e ciência contemporânea. (tradução Paulo Sartor Jr). 1. ed. - Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018, pp. 150, 151


Via Walson Sales


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REFERÊNCIAS E LEITURAS RECOMENDADAS

Carlson, Richard F. ed. 2000. Science and Christianity: Four Views. Downers Grove, IL: InterVarsity. 

Carlson, R. F.; Longman, Tremper, III, 2010. Science, Creation, and the Bible. Downers Grove, IL: InterVarsity. 

Collins, C. J. 2003. Science and Faith: Friends or Foes? Wheaton, IL: Crossway. 

Copan, Paul; Craig, William Lane, 2004. Creation Out of Nothing: A Biblical, Philosophical, and Scientific Exploration. Grand Rapids: Baker Academic. 

Walton, John H. 2011. Genesis 1 as Ancient Cosmology. Winona Lake, IN: Eisenbrauns.

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