Por Robert Spencer
O Alcorão contém muitos detalhes sobre incidentes específicos na vida do Profeta, mas nenhuma narrativa contínua - e os incidentes que o Alcorão relata são freqüentemente contados de forma oblíqua ou incompleta, como se o público já conhecesse o esboço da história. Allah, de acordo com a visão tradicional muçulmana, ditou cada palavra do Alcorão ao Profeta Muhammad por meio do Anjo Gabriel. O Alcorão é, de acordo com a tradição islâmica, uma cópia perfeita de um livro eterno - o umm al-kitab, ou Mãe do Livro - que sempre existiu com Allah. O Alcorão entregue aos poucos por meio de Gabriel a Muhammad durante sua carreira profética de 23 anos.
O próprio Allah é o único orador em praticamente todo o Alcorão. (Ocasionalmente, Muhammad parece ter falhado um pouco neste ponto: a sura 48:27, por exemplo, contém as palavras "se Allah quiser" - uma locução estranha para o próprio Allah usar.) Na maioria das vezes, ele se dirige a Muhammad diretamente, frequentemente dizendo a ele o que dizer sobre vários assuntos. Allah legisla para os muçulmanos por meio de Muhammad, dando-lhe instruções sobre quais leis estabelecer: "E perguntaram-te pelo mênstruo. Dize: é moléstia. Então apartai-vos das mulheres, durante o mênstruo, e não vos unais a elas, até se purificarem. E quando se houverem purificado, achegai-vos a elas por onde Allah vos ordenou. Por certo Allah ama os que se voltam para ele, arrependidos, e ama os purificados” (2: 222). [ Nota do tradutor: resolvi reproduzir as citações do Alcorão da versão bilingue do Alcorão Árabe-Português traduzida por Helmi NASR, salvo indicação em contrário].
Mas muitas vezes o assunto em questão não é tão simples: ler o Alcorão é, em muitos lugares, como entrar em uma conversa entre duas pessoas com as quais se conhece apenas ligeiramente. Quando os apologistas islâmicos dizem que os terroristas citam o Alcorão sobre a jihad "fora do contexto", eles se esquecem de mencionar que o próprio Alcorão freqüentemente oferece pouco contexto. Freqüentemente, o Alcorão faz referência a pessoas e eventos sem se preocupar em explicar o que está acontecendo. Por exemplo - e peço a indulgência do leitor ao entrarmos no Alcorão e sua exegese, o que pode parecer um pouco confuso - os primeiros cinco versos da sexagésima sexta sura do Alcorão dizem o seguinte:
Ó Profeta! Por que proíbes o que Allah tornou lícito para ti? Buscas o agradou de tuas mulheres? E Allah é perdoador , Misericordiador.
Com efeito, Allah preceituou , para vós, reparação de vossos juramentos não cumpridos. E Allah é o vosso Protetor. E Ele é O Onisciente, O Sábio.
E quando o Profeta confiou em segredo a uma de suas mulheres; e, quando esta informou a outra disso, e Allah lho fez aparecer, ele fez conhecer uma parte, e deu de ombros a outra parte. E, quando a informou disso, ela disse: “Quem te informou disso?” Disse: “informou-me O Onisciente, O Conhecedor.”
Se ambas vos voltais arrependidas para Allah, Ele vos remirá, pois, com efeito, vossos corações se inclinaram a isso. E, se vos auxiliais, mutuamente, contra ele, por certo, Allah é seu Protetor, e Gabriel, e os íntegros dentre os crentes. E os anjos, após isso, serão coadjutores dele.
Quiçá, se ele se divorcia de vós, seu Senhor lhe dê em troca mulheres melhores que vós, moslimes, crentes, devotas, arrependidas, adoradoras, jejuadoras, que forem casadas, ou que sejam virgens. (66. 1-5)
É impossível dizer a partir desta passagem o que o Profeta considerou proibido que Allah tornou lícito para ele, ou como ele tentou agradar suas esposas, ou sob quais circunstâncias Allah permite que juramentos sejam quebrados, ou qual segredo a esposa revelou que Allah mais tarde disse a Muhammad, ou mesmo quais são essas duas esposas que estão sendo admoestadas, advertidas para se arrependerem e não se unirem contra Muhammad, e ameaçadas de divórcio. A passagem inteira - e há muitas semelhantes no Alcorão - é completamente opaca para qualquer pessoa que não esteja diretamente envolvida nos procedimentos de interpretação.
Mas a tradição islâmica completa a história - e o faz no contexto de um dos primeiros muçulmanos, Abdullah bin 'Abbas, perguntando ao Califa Umar, um companheiro do Profeta e seu segundo sucessor como líder da comunidade muçulmana (umma), sobre essa passagem do Alcorão. Durante o Hajj - a peregrinação a Meca - Abdullah encontrou Umar e fez a pergunta: "Ó chefe dos crentes! Quem eram as duas senhoras dentre as esposas do Profeta a quem Allah disse: 'Se vocês duas retornarem em arrependimento (66.4)?"
Umar respondeu: "Estou surpreso com sua pergunta, ó Ibn 'Abbas. Elas eram Aisha e Hafsa." De acordo com Umar, Hafsa, uma das esposas de Muhammad, estava irritando o Profeta ao responder a ele. Então, quando Umar soube que Muhammad havia se divorciado de todas as suas esposas, ele não ficou surpreso; ele exclamou: "Hafsa é uma perdedora arruinada! Eu esperava que isso acontecesse algum dia."
Umar vai até Muhammad, que inicialmente se recusa a recebê-lo e depois cede. “Eu o cumprimentei e ainda de pé disse: 'Você se divorciou de suas esposas?' Ele ergueu os olhos para mim e respondeu negativamente." Umar então reclama que sua esposa se tornou desobediente, sob a influência de algumas mulheres muçulmanas convertidas recentemente. Com isso, diz Umar, "o Profeta sorriu." E ele sorriu novamente quando Umar contou que havia dito a Hafsa para não responder a Muhammad; A esposa de Muhammad, Aisha, ele disse a ela, só poderia se safar porque ela era mais bonita e Muhammad a amava mais.
Umar explica a Abdullah que "o Profeta não foi para suas esposas por causa do segredo que Hafsa havia revelado a Aisha, e ele disse que não iria para suas esposas por um mês porque estava zangado com elas quando Allah o advertiu (por seu juramento de que não se aproximaria de Maria.) Quando vinte e nove dias se passaram, o Profeta foi primeiro a Aisha”.[2]
Mas Umar não revela o segredo de Hafsa. De acordo com algumas autoridades, o problema se deu porque Hafsa pegou Muhammad na cama com sua concubina, Maria, a Copta, no dia que ele deveria passar com Hafsa. Muhammad prometeu ficar longe de Maria e pediu a Hafsa que mantivesse o assunto em segredo, mas Hafsa contou a Aisha. Então, Allah interveio com a revelação da ameaça de divórcio que agora encontramos na sura 66, liberando Muhammad de seu juramento de ficar longe de Maria.[3] Mas outra tradição explica o assunto de maneira bem diferente. Aisha explica:
O Profeta costumava ficar muito tempo com Zainab bint Jahsh [outra de suas esposas] e bebia mel em sua casa. Portanto, Hafsa e eu decidimos que se o Profeta viesse a qualquer uma de nós, ela deveria dizer a ele: "Detecto o cheiro de Maghafir (um chiclete com cheiro desagradável) em você. Você comeu Maghafir?" Então o Profeta visitou uma delas e ela disse a ele o combinado. O Profeta disse: "Não se preocupe, peguei um pouco de mel na casa de Zainab bint Jahsh, mas nunca mais beberei dele". Então foi revelado: "Ó Profeta! Por que você proíbe (para você) o que Allah tornou lícito para você? Se suas duas (esposas do Profeta) se arrependerem a Allah," (66.1-4) se referindo a Aisha e Hafsa. "Quando o Profeta revelou um assunto em sigilo a algumas de suas esposas" (66.3), a saber: mas eu peguei um pouco de mel.[4]
Neste cenário, a revelação da sura 66 diz respeito apenas ao ciúme de suas esposas (ou talvez ao mau hálito de Muhammad) e seu juramento de parar de beber mel. Neste caso, o que o Profeta considerou proibido que Allah tornou lícito para ele seria o mel. Ou seja, Muhammad tentou agradar suas consortes ao prometer parar de comer mel, e Allah está permitindo que ele quebre esse juramento e ameaçando as esposas errantes com o divórcio.
Em outro hadith, Umar assume o crédito indireto por inspirar parte desta revelação em particular: "Certa vez, as esposas do Profeta se juntaram contra o Profeta e eu disse a elas: 'Pode ser que ele (o Profeta) se divorcie de vocês, (todas) e que seu Senhor (Allah) dará a ele em vez de vocês, esposas melhores do que vocês.' Portanto, este verso [(v. 66.5) o mesmo que eu havia dito] foi revelado."[5]
Deixando de lado a questão da natureza de uma revelação divina a respeito da higiene oral do Profeta ou das brigas e ciúmes de suas esposas, fica claro que nenhuma das explicações islâmicas tradicionais para as declarações enigmáticas alusivas na sura 66 poderiam ser reconstruídas apenas do Alcorão.
Continua...
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Fonte:
SPENCER, Robert. The Truth about Muhammad: Founder of the World’s Most Intolerant Religion. Washington, DC: Regnery Publishing, 2006, pp. 20-24
Tradução Walson Sales
Ore para que Deus desperte as editoras para a publicação massiva de livros importantes como esse e levante outras novas editoras e editores com o mesmo interesse.
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Notas:
[2] Bukhari, vol. 3, book 46, no. 2468.
[3] Maxime Rodinson, Muhammad, translated by Anne Carter, Pantheon Books, 1980, 279-283.
[4] Bukhari, vol. 7, book 68, no. 5267.
[5] Bukhari, vol. 1, book 8, no. 402.
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