John Nelson Darby
Meu caro amigo e irmão em Jesus Cristo,
Deu-me muita satisfação ver sua tradução de meu livro. Tive o grato
prazer de lê-la, ou melhor dizendo, de ter alguém que a lesse para mim naqueles
momentos dos quais o Senhor nos diz, como disse aos apóstolos, “Vinde vós, aqui
à parte, a um lugar deserto, e repousai um pouco,” Mc 6.31.
Mas não posso deixar de dizer-lhe, meu caro amigo, que o prazer que a
aparência do seu trabalho me trouxe foi, em certa medida, abatido pela opinião
demasiado favorável que você expressou a meu respeito no prefácio.
Antes que tivesse lido uma palavra sequer de sua tradução, presenteei a
um mui querido e sincero amigo com um exemplar, e ele mencionou o que você
escreveu em seu prefácio louvando minha piedade. O texto produziu em meu amigo
o mesmo efeito que viria a produzir em mim, mais tarde, quando o pude ler.
Espero, entretanto, que você não leve a mal o que vou dizer a respeito do
assunto, o que é fruto de uma experiência razoavelmente longa.
“O orgulho é o maior de todos os males que nos afligem, e de todos os
nossos inimigos, não apenas é o mais difícil de morrer, como também o que tem a
morte mais lenta; mesmo os filhos deste mundo são capazes de discernir isto.
Madame De Stael disse, em seu leito de morte, sabe qual é a última coisa que
morre em uma pessoa? É o seu amor-próprio.” Deus abomina o orgulho mais do que
qualquer coisa, pois o orgulho dá ao homem o lugar que pertence a Deus que está
acima de tudo.
O orgulho interrompe a comunhão com Deus, e atrai Sua repreensão pois
“Deus resiste aos soberbos” (1Pe 5.5). Ele irá destruir o nome do soberbo, pois
nos é dito que “a altivez do homem será humilhada, e a altivez dos varões se
abaterá, e só o Senhor será exaltado naquele dia” (Is 2.17). Como você mesmo
irá sentir, meu caro amigo, estou certo de que não há maior mal que uma pessoa
possa fazer a outra do que louvá-la e alimentar seu orgulho. “O homem que
lisonjeia a seu próximo, arma uma rede aos seus passos” (Pv 29.5) e “a boca
lisonjeira obra a ruína” (Pv 26.28). Você pode estar certo, além do mais, que
nossa vista é muito curta para sermos capazes de julgar o grau de piedade de
nosso irmão; não somos capazes de julgar corretamente sem a balança do
santuário, e ela está nas mãos daquele que sonda o coração. Não julgue nada
antes do tempo, até que o Senhor venha, e torne manifesto os conselhos do
coração, e renda a cada um o devido louvor. Até então, não julguemos nossos
irmãos, seja para bem seja para mal, senão com a moderação que convém, e lembremo-nos
que o melhor e mais certo juízo é aquele que temos de nós mesmos quando
consideramos aos outros melhores do que nós.
Se eu fosse lhe perguntar como sabe que eu sou “um dos mais avançados na
carreira cristã, e um eminente servo de Deus”, sem dúvida você iria ficar sem
saber o que responder. Talvez você viesse a mencionar minhas obras publicadas;
mas será que você não sabe, querido amigo e irmão você que pode pregar um
sermão edificante tanto quanto eu – que os olhos vêem mais do que os pés alcançam?
E que, infelizmente, nem sempre somos o que são os nossos sermões? “Temos,
porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de
Deus, e não de nós” (2Co 4.7). Não lhe direi a opinião que tenho de mim mesmo,
pois se o fizer, é provável que enquanto o faça procure minha própria glória,
e, enquanto estiver buscando minha própria glória, possa parecer humilde, o que
não sou. Prefiro dizer-lhe o que o nosso Mestre pensa de mim – Ele que sonda o
coração e fala a verdade, que é “o Amém e a fiel Testemunha”, e que tem falado
freqüentemente no mais íntimo do meu ser, pelo que agradeço a Ele. Creia-me,
Ele nunca me disse que sou um “eminente Cristão e avançado nos caminhos da
piedade.” Ao contrário, Ele me diz bem claramente que se eu procurasse o meu
próprio lugar, iria encontrá-lo como sendo o do maior dos pecadores, pelo menos
dentre os que são santificados. E devo dar mais crédito ao julgamento que Ele
faz de mim, meu caro amigo, do que aquilo que você pensa a meu respeito.
O mais eminente Cristão é um daqueles de quem nunca se ouviu falar,
algum pobre trabalhador ou servo, para quem Cristo é tudo, e que faz tudo para
ser visto por Ele, e somente por Ele. O primeiro deve ser o último. Fiquemos
convencidos, meu caro amigo, de louvar somente o Senhor. Só Ele é digno de ser
louvado, reverenciado, e adorado. A Sua bondade nunca é demasiadamente
celebrada. O cântico dos abençoados (Apocalipse 5) não louva a ninguém senão
“Aquele que os redimiu com o Seu sangue.” Não há no cântico uma única palavra
de louvor a qualquer dos redimidos – nenhuma palavra que diga que são
eminentes, ou que não são eminentes – todas as distinções estão perdidas no
título comum, “os redimidos”, que expressa a alegria e glória de todo o Corpo.
Empenhemo-nos em trazer nossos corações em uníssono com aquele cântico,
ao qual todos esperamos que nossas débeis vozes venham se unir. Esta será a
razão da nossa alegria, mesmo enquanto estivermos aqui, e contribuirá para a
glória de Deus, a qual é lesada pelo louvor que os Cristãos freqüentemente
prestam uns aos outros. Não podemos ter duas bocas – uma para louvar a Deus e
outra para louvar o homem. Possamos, então, conhecer o que os serafins fazem
(Is 6.2, 3), quando com duas asas cobrem suas faces, como um sinal de sua
confusão diante da sagrada presença do Senhor; com outras duas asas cobrem seus
pés, como se tentassem esconder de si mesmos os seus próprios passos; e com as
duas asas restantes voam para executar a vontade do Senhor, enquanto proclamam,
“Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos: toda a terra está cheia da Sua
glória”.
Perdoe-me por estas poucas linhas de exortação Cristã, as quais tenho
certeza irão, cedo ou tarde, se tornar úteis para você, passando a fazer parte
da sua própria experiência. Lembre-se de mim em suas orações, enquanto rogo
para que a bênção do Senhor possa pousar sobre você e seu trabalho. Se você
porventura vier a imprimir uma outra edição – como espero que aconteça – por
gentileza, exclua as duas frases para as quais chamei sua atenção; e me chame
simplesmente “um irmão e ministro no Senhor.” Isto já é honra bastante, e não é
preciso mais”.
Carta escrita no séc. XIX ao Editor de um dos seus livros
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