28 E sabemos que todas as coisas concorrem
para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu
propósito. 29 Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos; 30 e aos que predestinou, a estes também chamou; e aos que
chamou, a estes também justificou; e aos que justificou, a estes também
glorificou.
A ordem das palavras, no texto grego, é “daqueles que amam a Deus”
precedida de “sabemos”, e isto é de primordial importância para a
interpretação. Murray chamou corretamente isto de “posição da ênfase”. Muitos
dos comentários depreciam a ênfase no amor do homem por Deus, mas essa maneira
de pensar é tendenciosa. É claro que Deus amou o homem antes de o homem amar a
Deus, mas Deus opera o seu propósito apenas naqueles que reagem de maneira
positiva ao seu amor. Deus derrama o seu amor nos corações daqueles que reagem
com fé (5:5).
O eco de Isaías 64:4 afirma que o homem natural é incapaz de conceber
“as (coisas) que Deus preparou para os que o amam” (I Cor. 2:9). Deus conhece
os que o amam (I Cor. 8:3), e a pessoa é condenada se “não ama ao Senhor” (I
Cor. 16:22). Dificilmente pode-se menoscabar algo em uma bênção como esta: “A
graça seja com todos os que amam a nosso Senhor Jesus Cristo com amor
incorruptível” (Ef. 6:24). Todavia, isto é impossível independentemente do amor
de Deus manifestado em Cristo (cf. Deut. 6:4).
Sabemos expressa convicção segura, não apenas
de Paulo, mas de toda a Igreja. O estado do texto grego, por detrás das
palavras todas as coisas concorrem para o bem, tem dado azo para três
interpretações diferentes. A versão antiga da IBB diz “todas as coisas
contribuem juntamente para o bem”. Esta é uma possível tradução do grego.
Porém, ela é difícil de se harmonizar com a ênfase de Paulo da iniciativa e
soberania de Deus. As coisas simplesmente não contribuem desta forma, como tão
otimistamente presumia o panteísmo estóico. Este versículo é de um monoteísmo
radical, em que Deus está encarregado das coisas! A tradução inglesa New
English Bible (NEB) revive o que Bruce chama de “uma antiga e atraente
interpretação, que em geral tem merecido pouca atenção dos tradutores e
comentaristas, de acordo com a qual o sujeito de ‘concorrem’ é o sujeito do versículo
anterior – o Espírito”. A ideia do Espírito cooperando com os que amam a Deus é
certamente verdadeira, mas é duvidoso que ela chegue perto do significado
original, tanto quanto a versão inglesa Revised Standard Version (RSV), na qual
se baseia o original inglês deste comentário. A RSV diz: “Sabemos que em todas
as coisas Deus opera para o bem dos que o amam” (v. 28a).
Deus trabalha com os que o amam em direção do alvo do bem. Murray
insiste que isto é tudo “monergismo divino”, mas o verbo grego é sunergei,
do qual provém a ideia de um sinergismo entre a vontade de Deus e a vontade do
homem. A tradição agostiniana-calvinista introduz as suas ideias, mesmo que
seja para rejeitar a própria palavra do texto! Monergismo não é melhor do que
panteísmo, pois ambos destroem a distinção entre Deus e a sua criação. Os que
são chamados segundo o seu propósito são os mesmos que amam a Deus,
e há uma correspondência humana ao chamado divino, da mesma forma como há uma
reação humana ao amor de Deus. Sem esta reação, o propósito de Deus não se
cumpre no homem, e o homem perece. Aqueles que foram chamados para pertencer a
Jesus Cristo e “chamados para serem santos” (1:7) são chamados por Deus (9:11).
O chamado ou vocação é a realização do propósito eterno de Deus na história
(cf. Ef. 1:11; 3:11; II Tim. 1:9). O propósito de Deus é a vontade de Deus, e é
a vontade de Deus que o Espírito de Deus procura realizar no homem (cf. 8:27).
À medida que o pensamento se volta do propósito de Deus em toda a
criação (todas as coisas) para o propósito de Deus no crente, há também uma
mudança de direção do amor do homem para com Deus para o amor de Deus para com
o homem (v. 29). Algumas pessoas têm pensado que está presente, neste
versículo, uma fórmula batismal em forma de hino. Isto pode ser verdade, mas a
forma não é a mesma do versículo seguinte. A forma é bastante semelhante à do
versículo anterior. A predestinação ou conhecimento prévio, a primeira das
quatro grandes ideias do verso 29, significa que Deus amou o homem antes que o
homem amasse a Deus (cf. I João 4:19). Da mesma forma como um pai conhece e ama
o seu filho antes que este chegue a conhecê-lo e amá-lo, Deus age para com os
seus filhos. Muitas pessoas ainda seguem a ideia de Orígenes, de que Deus
predestinou com base no seu conhecimento dos acontecimentos antes que ocorram,
mas tal racionalismo perde de vista toda a ideia de amor.
Conhecer e amar muitas vezes tem o mesmo significado nas Escrituras (cf.
I Cor. 8:3; I João 4:7, 8). Conhecer é frequentemente um termo usado para as
relações sexuais íntimas (Gên. 4:17; Núm. 31:18; Luc. 1:34, IBB antiga), e é um
passo fácil para o amor baseado na aliança entre Deus e seu povo (Gên. 18:19;
Am. 3:2; Os. 13:5; Jer. 1:5; Mat. 7:23). A premonição de Deus a respeito do
homem antes que este conheça a Deus não torna a predestinação inevitável, como
geralmente presume a tradição agostiniana-calvinista. É estranho como se dá
pouca atenção às claras palavras de advertência escritas por Paulo: “Outrora,
quando não conhecíeis a Deus, servíeis aos que por natureza não são deuses;
agora, porém, que já conheceis a Deus, ou melhor, sendo conhecidos por Deus,
como tomais outra vez a esses rudimentos fracos e pobres, aos quais de novo
quereis servir?” (Gál. 4:8, 9). Mais tarde, este pensamento será harmonizado
com a aparente exceção de 11:2.
O problema da predestinação nunca pode ser resolvido, se se presumir
que, sem exceção, os que são conhecidos por Deus estão predestinados para a
glória. O monergismo sempre termina em predestinação dupla ou no universalismo.
Se Deus faz tudo, ele é responsável por tudo o que acontece; mas, se o homem é
responsável pela reação que tem, então o resultado da parte do homem é
condicional. A predestinação condicional significa que o verdadeiro destino do
homem é alcançado apenas onde há fé o tempo todo, até que se alcance o alvo.
Salvação é um caminhar, e não um salto, em que Deus sustém o homem pelos
cabelos! É uma comunhão, e não fatalismo. O destino dos que permanecem em
Cristo é o destino de Cristo. Ele é o predestinado, e o crente é predestinado
nele (cf. At. 2:23; 4:28). As claras palavras de Paulo, aqui, devem ser
colocadas no contexto da graça, mas não devem ser separadas da fé.
Deus “nos predestinou para sermos filhos de adoção por Jesus Cristo,
para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade, para o louvor da glória da
sua graça, a qual nos deu gratuitamente no Amado” (Ef. 1:5, 6). O homem não
está em dificuldades porque é número seis, nem vai para o céu porque é número
sete (jogo de palavras em inglês). Ele estará em dificuldades se não reagir de
maneira positiva e permanente à graça de Deus, e irá para o céu se crê e
continuar a crer em Jesus Cristo. Da mesma forma como alguém chega a Curitiba
porque embarcou em um avião destinado a Curitiba, uma pessoa também chega à
glória porque permanece em Cristo, que foi predestinado à glória. Predestinação
significa que sabemos para onde estamos indo, antes de chegarmos lá.
Predestinação será o tema dos capítulos 9 a 11.
Paulo não cai na incongruência dos fariseus, como sugere Knox, pois
dificilmente ele usaria o termo destino. Os fariseus ensinavam que tudo depende
do destino e de Deus; não obstante, a escolha do certo ou errado, em sua maior
parte, cabe ao indivíduo (Josefo, Guerras, II.8.14). Bruce chama a
atenção para uma opinião semelhante na Regra da Comunidade (Rule of
the Community) de Qumran: “Do Deus do Conhecimento vem tudo o que é e que
será. Mesmo antes que eles existissem ele estabeleceu todo o seu destino, e
quando, como era ordenado para eles, vieram a existir, é de acordo com o Seu
glorioso desígnio que cumprem a sua obra.”
Ser conformes à imagem de seu Filho combina duas palavras gregas,
que têm significado afim. Ambas estão associadas com a morte e ressurreição de
Cristo. Paulo sentia dores de parto pelos vacilantes gálatas, até que Cristo
“fosse formado” neles (Gál. 4:19). O corpo redimido se conformará com o corpo
glorioso do Senhor ressuscitado, que voltará (Fil. 3:21). O padrão de
conformação ou de semelhança é a humilhação e exaltação de Cristo (Fil.
2:1-11). Conformidade com Cristo, na sua morte e ressurreição, é usada,
portanto, como fonte de consolo no meio do sofrimento (Fil. 3:10, IBB antiga).
A palavra imagem é também uma ideia escatológica. “E, assim como
trouxemos a imagem do terreno, traremos também a imagem do celestial” (I Cor.
15:49). Esta e todas as outras passagens a respeito da imagem de Deus estão
arraigadas em Gênesis 1:26, 27, indicando que o homem não se conforma
plenamente com a imagem de Deus antes da ressurreição. Todos os homens têm a
imagem de Deus na criação, o que lhes dá domínio sobre tudo o que Deus criou,
mas o homem redimido ainda não ostenta plenamente a dinâmica imagem de Deus em
amor. A imagem formal nunca é perdida, e a imagem material está sendo recebida
no processo da transformação. “Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo
como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na
mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor” (II Cor. 3:18; cf. Col. 3:10). A
expressão “transformados... na mesma imagem” é literalmente “metamorfoseados na
mesma imagem”, que é um comentário tanto da palavra “forma” como da palavra
“imagem”. Cristo é “a imagem de Deus” (II Cor. 4:4), e conformar-se com Cristo
é ser transformado na imagem de Deus.
A ideia do primogênito também está relacionada com a ideia de
imagem. Cristo “é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação”
(Col. 1:15). O uso de primogênito no verso 29 é mais próximo do uso de
Colossenses 1:18, onde Cristo é chamado de “o princípio, o primogênito dentre
os mortos”. Primogênito tem em si a ideia de prioridade e proeminência.
Colossenses 1:15-20 (Bíblia de Jerusalém) é um hino cristão, e as
palavras gregas traduzidas como “primogênito” e “preeminência” formam um jogo de
sons. O primogênito é o filho proeminente, que recebe a herança e a autoridade
do Pai (cf. Heb. 1:6; Apoc. 1:5). O antigo arianismo usava esta palavra para
argumentar que “houve um tempo em que o Filho de Deus não existia”, mas isto
foi corretamente condenado como heresia. Lightfoot há muito tempo já
estabeleceu a ideia de proeminência ou primazia como significado desse termo.[1]
Como irmãos de Cristo, todos os crentes compartilharão do seu destino
(cf. Heb. 2:10-17), e Cristo é o Filho proeminente entre os filhos de Deus (cf.
1:3).
A realização histórica do propósito eterno de Deus é expressa nos quatro
tempos aoristos (v. 30), visto que o ponto de vista é do eterno propósito de
Deus, que alcançava o passado. A forma literária é a de sorites, uma
série “em que o predicado lógico de uma cláusula se torna o sujeito lógico da
seguinte” (Bruce). A sugestão de um hino, feita por Schille, é mais clara aqui
do que para o versículo anterior:
E aos que predestinou,
a estes também chamou;
e aos que chamou,
a estes também justificou;
e aos que justificou,
a estes também glorificou.
A predestinação é repetida do versículo anterior, mas chamado,
justificação e glorificação são acrescentados. O chamado, que pertence
especialmente ao começo da vida cristã, já foi notado (1:1, 6, 7; 8:28), e
surgirá novamente em relação à predestinação (11:29; cf. 1 Tess. 4:7; I Cor.
7:18; Gál. 1:6; Col. 3:15). Justificação, o tema dos capítulos 1 a 4, descreve
todo o estado da vida atual de fé. Glorificação tem referência futura ao tempo
quando os santos de Deus, que como pecadores ficaram aquém, participarão da
glória manifestada em Jesus Cristo (3:23; 5:2; 8:18; cf. Col. 3:4). Graus de
glória já estão raiando (II Cor. 3:18).
Fonte: Comentário
Bíblico Broadman, Vol. 10, pp. 259-262
[1] St. Paul’s Epistles to the Colossians and Philemon (London: Macmillan, 1875), p. 146-150 a respeito de Colossenses
1:15.
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