domingo, 3 de abril de 2022

Comentários - J. C. Ryle - João

 

JOÃO 4.27-30


27 Nisto chegaram seus discípulos e maravilharam-se de que estivesse falando com uma mulher; ninguém, todavia, lhe perguntou: Que procuras, ou que falas com ela? 28 A mulher deixou o cântaro, foi à cidade e disse ao povo: 29 Vinde ver um homem que me contou tudo o que fiz; será este, porventura, o Cristo?  30 Saíram da cidade e vieram ter com ele.

Contêm estes versículos o seguimento da conhecida história da conversão da mulher samaritana. Se bem que curta, encerra esta passagem tópicos da maior importância. O mundano, que se não preocupa dos sentimentos religiosos, nada de particular perceberá nestes versículos. Os que desejam saber algo do que experimentam as pessoas recém-convertidas, verificarão, porém, que se acham repletos de alimento espiritual.

1º Aos olhos dos homens, torna-se, em extremo, maravilhoso o modo de proceder de Cristo com as almas. Pasmam os discípulos de ver Jesus a falar com a mulher. Ele, o Mestre, cansado da viagem, dar-se ao incômodo de prestar atenção a uma mulher, e logo uma samaritana! É cousa estranha para eles. Supunham que um cabeça de religião assim se rebaixava; e por isto ficaram pasmados e tomados de surpresa.

Há, na Bíblia, outros exemplos de semelhante conduta. Quando Nosso Senhor permitiu que publicanos e pecadores se aproximassem dele e gozassem de sua companhia, os fariseus se admiraram, e exclamaram: “Este recebe aos pecadores e come com eles” (Lc 15.2).

Quando Saulo, convertido e renovado pelo Espirito Santo, regressou de Damasco, os cristãos de Jerusalém ficaram cheios de surpresa, e não criam que fosse discípulo (At 9.16).

Assim que Pedro foi libertado do cárcere de Herodes, por um anjo, e conduzido à porta da casa, em que os discípulos estavam orando pela sua libertação, foram estes tomados de tal surpresa, que não podiam crer que era Pedro. Convenceram-se e ficaram espantados (At 12.16).

Não havemos, porém, mister de nos circunscrever aos exemplos bíblicos. Basta ao verdadeiro cristão olhar para o redor de si, que perceberá numerosos casos equivalentes. Quanto pasmo não causa cada conversão! Quanta surpresa nas transformações do coração, do procedimento, das aspirações do convertido! Quanto se admira então o poder, a misericórdia, a paciência e a compaixão de Jesus Cristo! O que ora acontece, é o mesmo que se deu há mil e novecentos anos.

Fora mais abundante a fé, e menor seria a surpresa pela conversão das almas. Neste ponto não deveríamos admitir o impossível, nem considerar nenhum pecador fora do alcance da divina misericórdia. Deveramos, ao contrário, surpreender-nos da obstinada incredulidade dos ímpios e da sua perseverança no caminho da perdição. Jesus Cristo dava graças ao Pai pelas conversões; maravilhava-se, porém, da incredulidade (Mt 11.25; Mc 6.6).

2º Quando, pela primeira vez, a graça penetra no coração do homem, o seu influxo absorve-o todo. A mulher saíra de casa com o fito expresso de ir buscar água; levava ao poço um cântaro, para o trazer cheio. Junto ao poço, entretanto, seu coração foi renovado; sua atenção foi atraída por objetos e idéias novas. Esqueceu-se, então, de tudo mais e deixou-se tão-somente absorver pelas verdades ouvidas do Salvador, que acabava de encontrar. Transbordando de júbilo o seu coração, deixou o cântaro e apressou-se em ir comunicar aos outros os seus sentimentos.

Isto nos dá a conhecer o poder expulsivo da graça do Espírito Santo. Apenas esta graça penetra no coração, expele as preferências e afeições do passado. A pessoa, que se converte, já não aprecia o que antes desejava; o mundo parece-lhe outro, todas as cousas se lhe deparam sob novo aspecto. Assim aconteceu com Mateus, o publicano: no mesmo instante, em que o Espírito iluminou o seu coração, deixou a banca dos tributos (Mt 9.9). O mesmo aconteceu a Pedro, Tiago, João e André: no momento, em que se converteram. deixaram suas redes e seus barcos (Mc 1.19). A Saulo, o fariseu, aconteceu o mesmo. Convertido, abandonou incontinenti o brilhante porvir, que, como judeu, se lhe antolhava, para pregar a fé, que anteriormente desprezara. O proceder da Samaritana foi análogo ao destes homens.

Tais casos, é certo, tornaram-se raros em nossos dias. Raro encontramos pessoa de tal modo absortas em assuntos espirituais, que considerem cousa secundária os negócios deste mundo. E isto por quê? Pela simples razão de que as verdadeiras conversões se tornaram raríssimas. Há poucos que sentem realmente o peso dos seus perados e atendem a Cristo por meio da fé; há poucos que passam da morte para a vida e se arrependem dos próprios pecados. Todavia, esses poucos são os verdadeiros cristãos, que há no mundo; os que transmitem a outros corações o benéfico influxo da religião que professam.

Mil vezes felizes os que experimentaram as mesmas emoções, que inundaram o peito da Samaritana e podem dizer com S. Paulo: “Tudo tenho como perda, pela excelência do conhecimento do Cristo Jesus meu Senhor.” Mil vezes felizes os que deixaram tudo pelo amor a Jesus Cristo, ou, pelo menos, mudaram de pensar, quanto à relativa importância dos bens terrenos. “Se teus olhos forem símplices, o teu corpo será luminoso” (Fp 3.8; Mt 6.22).

3º A pessoa verdadeiramente convertida é zelosa da conversão dos demais. Refere-se-nos que a mulher Samaritana se encaminhou para a cidade e disse aos homens: “Vinde ver um homem que me contou tudo o que fiz; será este, porventura, o Cristo?” No mesmo dia da sua conversão, tornou-se uma espécie de missionária. De tal modo ela sentiu a imensidade do favor recebido de Jesus Cristo, que não pôde ficar calada. E, assim como André falou a Pedro, seu irmão, a respeito de Jesus, e Filipe disse a Natanael que encontrara o Messias, e Paulo convertido se absorveu na pregação de Jesus Cristo, assim também a Samaritana disse: “Vinde, e vede se é o Cristo.” Não argumentou, para lhes demonstrar cabalmente que Nosso Senhor era, por direito, o Messias. Disse-lhes apenas: “Vinde, e vede.” Os seus lábios falaram da abundância do coração.

Todo verdadeiro cristão devera imitar o procedimento da mulher de Samaria. A igreja o quer; o estado atual do mundo o requer; o senso comum o aconselha. Todo aquele que recebeu a graça de Deus e foi objeto da misericórdia de Jesus Cristo, devera encontrar palavras, para anunciar ao seu próximo o Evangelho. Que fé é a nossa, se, crendo que ao pé de nós se acham almas em caminho da perdição, e Cristo somente pode salvá-las, não obstante isto guardamos profundo silêncio? Que caridade é esta, que nos anima, se vemos o nosso semelhante à beira do abismo, e, todavia, lhe não dizemos nada de Jesus Cristo e da salvação? Se os nossos corações nunca nos movem a falar em Jesus Cristo, temos sérios motivos de duvidar que verdadeiramente o amamos. Teremos também razão de duvidar da segurança de nossas almas, se não sentirmos nenhum interesse pelas almas dos demais.

Examinemo-nos, pois. Reconhecemos a pequenez e insignificância das cousas deste mundo, relativamente à suprema importância das cousas espirituais? Falamos ao nosso semelhante acerca de Deus, de Cristo, da eternidade, da alma, do céu e do inferno? Se não, que é da nossa fé? Que é do nosso Cristianismo? Estejamos alerta, para que não venhamos a despertar-nos tarde demais do nosso letargo, quando já estivermos perdido para sempre, por causa da nossa insensatez e cegueira espiritual.


ANOTAÇÕES


V. 27. – Maravilharam-se de que estivesse falando com uma mulher. Parece mais correto traduzir: uma mulher e não a mulher. No original grego a palavra mulher não está precedida do artigo definido. O que causou surpresa aos discípulos, não foi tanto o falar com aquela, e, sim, com uma mulher. Segundo os escritos dos rabinos, parece que os Judeus consideravam as mulheres como inferiores aos homens, seja intelectualmente, seja em matéria religiosa.

V. 28. – Foi à cidade. Isto é, a Sicar.

E disse ao povo. É natural que a mulher não se tenha dirigido só aos homens, mas também às outras mulheres. É possível, entretanto, que primeiro se tenha dirigido aos homens, pelas ruas, e depois às mulheres, em suas casas, segundo o costume.

V. 29. – Vinde ver um homem. Por causa do seu espírito de propaganda, Orígenes chama-lhe, a esta mulher, apóstolo dos Samaritanos.

Que me contou tudo o que fiz. Estas palavras não devem ser tomadas ao pé da letra. Eis o sentido provável: “Ele me desvendou os principais pecados que eu cometi e deu-me a perceber que conhece os primordiais acontecimentos de minha vida. E, do que me disse, é bem fácil deduzir que poderia narrar-me tudo que tenho feito.” Demais, cumpre não perder de vista o calor, com que a mulher pronunciou essas palavras, e usou de uma linguagem hiperbólica, de que, noutras circunstâncias, talvez se abstivesse. Enfim, é também possível que Jesus lhe manifestasse outras muitas cousas, que S. João deixou de referir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário