segunda-feira, 11 de abril de 2022

O Teísmo entre Pagãos, Judeus, Cristãos e Muçulmanos Ilustres

 

Por Walson Sales

 

Apesar de já ter dado um panorama sobre o Teísmo mais amplo entre os Gregos no volume sobre o Ateísmo, achei importante retomar aqui o assunto sobre essa influência, para fazer uma sequência ordenada dos temas propostos no subtópico. Já está claro desde o começo deste capítulo que o Teísmo em si evoca a ideia de um Deus pessoal e que esta visão de mundo se encaixa em três cosmovisões religiosas, a saber: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo (obedecendo uma ordem cronológica natural). Contudo, tendo em vista haver um mantra moderno que afirma que a filosofia (bem como a ciência) afastam os homens de Deus, o que não é verdade, me dedico a retomar o tema com esse Teísmo mais amplo que ocorreu entre os Gregos, os quais são denominados como pagãos na literatura, principalmente a Cristã e o motivo está bem patente: a grande maioria dos filósofos Gregos acreditavam em Deus ou nos deuses, ou seja, acreditavam na existência dessa esfera metafísica paralela espiritual, o que por sí só, já desmantela a ideia de que a filosofia afasta os homens de Deus. Os filósofos Gregos tiveram o vislumbre da revelação natural, tanto na criação, quanto em suas consciências e afirmaram a existência de uma instância superior que seria responsável pela existência do cosmos e de si mesmos.

O próprio ateu australiano Graham Oppy documenta esse período pujante do pensamento racional e das especulações filosóficas entre os Gregos e Romanos no livro The Routledge companion to Theism. Ele menciona acertadamente que há uma tradição teísta que atravessa o pensamento Grego e Romano antigo, centrada principalmente em Platão (429-347 a.C.,) e no Platonismo. Talvez haja antecedentes para essa tradição em pensadores ainda mais antigos, como Xenófanes (570-480 a.C.,). No entanto, há uma linha clara de pensadores pagãos, que defendem uma espécie de teísmo, de Platão aos Neoplatônicos da antiguidade tardia - nesta linha encontramos, por exemplo, Plutarco (c.45-120 d.C.,), Plotino (c.204–70 d. C.,), Porfírio (232–305 d.C.,) e Proclus (411–85 d.C.,). Claro, muitos teístas contemporâneos irão insistir que o ser que os Neoplatônicos chamam de “O Único” e “O Bom” difere de várias maneiras de seu Deus; mas também houve incontáveis Cristãos ao longo dos séculos que foram preparados para dizer que seu Deus é "O Único" e "O Bom" (OPPY, 2013, p. 12). Duas coisas merecem ser ditas aqui antes de prosseguirmos. Primeira, “O Único” e “O Bom” diferem de várias maneiras exatamente porque onde os filósofos pagãos se aventuravam a dar “mais” detalhes dessa divindade evocada apenas pela razão, eles se afastaram significativamente dos detalhes oriundos da revelação especial na Escritura, seja na Revelação Judaica no AT, seja na Revelação Cristã contida no AT e no NT, ou na revelação contida no Alcorão, nas Sunnas ou nos Hadiths dos Muçulmanos.[1] A segunda é que existiram filósofos Cristãos que se coadunaram com muitos aspectos oriundos do pensamento Grego sobre o tema, e isso nos dois sentidos, tanto quando os filósofos pagãos acertaram e se aproximaram significativamente da revelação especial, tanto quando os filósofos pagãos se afastaram significativamente da revelação especial, como por exemplo, Orígenes.[2] Contudo, esses filósofos Cristãos da Igreja Primitiva não tiveram o Cânon das Escrituras devidamente estabelecido na época de seus tempos de vida e os pais pré-nicenos não tinham nenhuma formulação doutrinária universal. Então, a influência da filosofia Grega, do Neoplatonismo e até mesmo dos livros apócrifos causaram impactos diversos em alguns dos escritos desses homens. Então vale destacar que o Deus pessoal das tradições Teístas é O Uno (apenas no sentido Monoteísta) e é O Bom (apenas no sentido de ser Todo Amoroso e Bondoso), mas sem os penduricalhos exagerados desses filósofos que se chocam com a revelação especial. Isso mostra que essa especulção do Oppy não tem tanto fundamento.

O Professor e Filósofo, Kevin L. Flanery, especialista em Teologia Filosófica Antiga, prova que a realidade de Deus fora asseverada em ricos detalhes pelos filósofos antigos. Depois de analisar as tradições sobre Deus e sobre os deuses nas obras de Platão, inclusive a do Deus racional e a do Deus intervencionista, ele afirma que existe uma maneira de reconciliar essas duas vertentes da doutrina Platônica, levando em consideração a maneira pela qual Platão defende a última. Nas Leis X Platão argumenta que, para os deuses, não se preocupar com os detalhes da vida pessoal seria incompatível com sua natureza. Se os artesãos humanos sabem cuidar dos detalhes de seus próprios negócios, muito mais os deuses, que “sendo bons, possuem todas as virtudes próprias de si mesmos para cuidar de todas as coisas” (900d1–2). Uma vez estabelecido esse ponto, é fácil justificar práticas cúlticas, desde que não envolvam os deuses em coisas incompatíveis com sua natureza divina, como a injustiça (905d8-906d6). Dessa maneira, a preocupação dos deuses com a humanidade se torna parte de sua própria racionalização ou inteligibilidade. Argumentos desse tipo baseados nas características naturais de Deus, é claro, terão um papel enorme na teologia filosófica subsequente. A mais importante das características isoladas por Platão é a bondade de Deus (veja, por exemplo, Timeu 29e1 - 3; Fedro 247a4-7; República II.381b1–5.382e8–11). Com isso estabelecido, ele é livre para argumentar filosoficamente também que todos devemos procurar a semelhança com Deus (homoiosis theoi Teeteto 176b1-3), uma espécie de intervenção divina reversa (2010, p. 86).

Flannery também apresenta o pensamento de Aristóteles sobre o tema. A teologia filosófica de Aristóteles tem muito em comum com a de Platão. Sua abordagem teleológica da física e da cosmologia é igualmente incompatível com o evolucionismo materialista que Platão critica nas Leis X (ver Física VIII.1 e Metafísica I.8.988b22-8); e ele favorece uma desmitologização da teologia (Metafísica XII.8.1074a38 - b14; Política I.2.1252b26 - 7) sem negar que os deuses inferiores existem (Metafísica XII.8). Aristóteles também sugere em vários lugares que ele não é totalmente contrário à ideia de Deus como a Alma do Mundo (embora ele não tenha tempo para um Artesão Divino). Por exemplo, em Metafísica XII.8, no final de sua explicação de como o motor imóvel funciona através dos planetas e estrelas, influenciando também eventos humanos (1074a25-31), ele diz que os antigos tinham um pressentimento disso - isto é, que os corpos celestes “são divinos e que o divino abraça toda a natureza” (1074b2 - 3). Na Metafísica XII (especialmente 7 e 9), ele identifica Deus, "um ser vivo" (1072b29), com nous (mente), um componente claro também da alma humana (ver também Metafísica XII.9.1075a6 - 10 e Sobre a Alma III.5). E na Ética a Nicômaco X.8, ele usa, como base de um argumento que a contemplação filosófica é a vocação mais alta, a ideia de que os deuses cuidam dos assuntos humanos (1179a24-5). Portanto, embora pareça que Aristóteles nunca fale de Deus como a Alma do Mundo (veja, no entanto, Clemente de Alexandria, Protrepticus V.66.4), ele certamente é a favor de um Deus intimamente ligado ao mundo.

Na Física VIII.5, no entanto, ele também fala favoravelmente da Mente de Anaxágoras, na medida em que é "impassiva e sem mistura [com o mundo]" (256b24-7; cp. Metafísica I.4.985a18). A palavra anterior, especialmente (“impassivo” ou apathes) aparece em várias outras passagens cruciais para a consideração atual (por exemplo, Metafísica XII.7.1073a11; Sobre a Alma III.5.430a24, I.4.408b27 – 31), para que possamos ter certeza de que o elogio de Aristóteles a Anaxágoras não é uma observação perdida. Como Aristóteles pode sustentar que Deus é imanente e também “impassivo e sem mistura?” Muito de seu argumento depende de uma analogia extraída da geometria. Assim como o locus primário de poder e influência em uma esfera rotativa é o seu eixo central, que, embora se mova (transitivamente) as outras partes da esfera, permanece quieta, também o motor imóvel permanece majestosamente impassivo, mesmo sendo a fonte da atividade do universo (Física VIII.9.265b7 - 8; ver também Movimento dos Animais III). Aristóteles combina essa ideia de poder imanente com a ideia de que Deus é uma causa final, como “o objeto do desejo e o objeto do pensamento”, pois “se movem, mas não são movidos” (Metafísica XII.7.1072a26 - 7) O resultado final é uma concepção de Deus como uma força impulsora dentro do universo e um objeto de desejo que atrai o homem para além dele.

Aristóteles também fala do motor imóvel como "pensamento pensando a si próprio" (Metafísica XII.9.1074b33-5; ver também Ética Eudemônica VII.12.1245b16-19) e foi criticado por colocar um Deus distante e auto-absorvido. Mas isso é bastante irreconciliável com sua teoria geral e deve ser resistido como uma possível interpretação. Aristóteles rejeita a noção de que Deus possa pensar em algo que não seja ele mesmo precisamente porque isso diminuiria seu poder (Metafísica XII.9.1074b34). O poder que preocupa Aristóteles é o poder pelo qual Deus tem um efeito no mundo (Metafísica XII.6.1071b12 - 32). (Na Física VIII.5, Aristóteles também fala da Mente mencionada por Anaxágoras que "Ela só podia causar movimento da maneira que causa sendo imóvel, e só pode governar não estando misturado”- 256b26 - 7; ênfase adicionada.) Portanto, devemos conceber os pensamentos de Deus sobre si mesmo como ligados à sua imanência (Metafísica I.2.983a8 - 10, III.4.1000b3-6). Aristóteles oferece uma explicação de como isso funciona: assim como nossas intenções (internas) são seus objetos externos menos sua matéria, Deus também se pensa nas coisas que dependem dele (Metafísica XII.9.1047b38 - a5; também Sobre a Alma III.5.430a19-20). A interpretação de Tomás de Aquino pareceria então correta, que é precisamente em pensar em si mesmo que Deus sabe - e controla - todas as outras coisas (nas seções 2614 - 16 da Metafísica) (Ibid, pp. 86, 87). Assim, apesar das claras diferenças com a revelação especial e apesar do fato de estarem apenas munidos da revelação geral e natural, os chamados filósofos pagãos se aproximaram veementemente das nuances características do Deus das tradições monoteístas. Sem deixar de mencionar que eles não negaram, em hipótese alguma, a existência desse Ser tão magnífico que os arrebatavam em meditações teoréticas contemplativas tão profundas e ricas, apesar de suas diversas inexatidões.

 

Continua...

 

Referências e notas:

 

[1] Com isso não estou dizendo que o AT e o NT se harmonizam com as escrituras Islâmicas. O que quero dizer é que essas três tradições evocam a ideia de uma revelação especial do Deus criador do cosmos que difere em muitos sentidos do quadro geral apresentado pelos filósofos pagãos.

[2] Por exemplo, o Neoplatonismo ensinava que Deus é UNO, que paira acima do dualismo e dele emana o NOUS, semelhante ao LOGOS da teologia defendida por Orígenes. Nessa visão de mundo, as almas dos indivíduos procedem do NOUS, que é a alma do mundo, de onde deriva o reino da matéria. Cada estágio, relativo a quantidade de ser que possui, é inferior àquele que o precedeu. As almas, devido à queda que ocorreu no mundo espiritual, ficaram desligadas de Deus e unidas a matéria (MONTEIRO, 2002 p. 36). Veja também como Orígenes afirma a espiritualidade de Deus e como ele apresenta ter recebido clara influência de outros filósofos pagãos. Para ele, Deus é espírito e simples. Usa o termo Pitagórico Mónada para descrever a pessoa de Deus junto com o termo Platônico Enéada. Para ele o Logos é a imagem da bondade de Deus mas não o bem em si. Afirma então que o Logos está em uma posição de subordinação (afirma aqui o subordinacionismo, uma heresia que seria rejeitada posteriormente pelos Pais da Igreja) (Nicola Abbagnano, História da Filosofia, Vol II). Contudo, vale destacar o que um dos maiores pesquisadores da Patrística, David W. Bercot, afirma sobre essas especulações de Orígenes. Ele meniona que a maioria dos ensinamentos de Orígenes eram bastante harmoniosos com a ortodoxia da igreja pré-Nicena. No entanto, por causa de sua mente brilhante, Orígenes apresentou uma série de especulações teológicas que a maioria dos Cristãos considerou inadequadas. Deve ser lembrado que a quantidade de dogmas definidos na igreja pré-nicena era muito pequena, e Orígenes foi muito cuidadoso para não ensinar o contrário a qualquer dogma definido pela igreja. Os críticos modernos de Orígenes freqüentemente citam seus pontos de vista especulativos fora de seu contexto histórico, fazendo parecer que Orígenes estava ensinando coisas como dogmas. No entanto, Orígenes deixou claro que suas especulações não estavam sendo apresentadas como dogmas, mas como pontos de diálogo e reflexão (1998, p. 487).

 

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