Por Walson
Sales
Apesar
de já ter dado um panorama sobre o Teísmo mais amplo entre os Gregos no volume
sobre o Ateísmo, achei importante retomar aqui o assunto sobre essa influência,
para fazer uma sequência ordenada dos temas propostos no subtópico. Já está
claro desde o começo deste capítulo que o Teísmo em si evoca a ideia de um Deus
pessoal e que esta visão de mundo se encaixa em três cosmovisões religiosas, a
saber: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo (obedecendo uma ordem cronológica
natural). Contudo, tendo em vista haver um mantra moderno que afirma que a
filosofia (bem como a ciência) afastam os homens de Deus, o que não é verdade,
me dedico a retomar o tema com esse Teísmo mais amplo que ocorreu entre os
Gregos, os quais são denominados como pagãos na literatura, principalmente a
Cristã e o motivo está bem patente: a grande maioria dos filósofos Gregos
acreditavam em Deus ou nos deuses, ou seja, acreditavam na existência dessa
esfera metafísica paralela espiritual, o que por sí só, já desmantela a ideia
de que a filosofia afasta os homens de Deus. Os filósofos Gregos tiveram o
vislumbre da revelação natural, tanto na criação, quanto em suas consciências e
afirmaram a existência de uma instância superior que seria responsável pela
existência do cosmos e de si mesmos.
O
próprio ateu australiano Graham Oppy documenta esse período pujante do
pensamento racional e das especulações filosóficas entre os Gregos e Romanos no
livro The Routledge companion to Theism. Ele menciona acertadamente
que há uma tradição teísta que atravessa o pensamento Grego e Romano antigo,
centrada principalmente em Platão (429-347 a.C.,) e no Platonismo. Talvez haja
antecedentes para essa tradição em pensadores ainda mais antigos, como
Xenófanes (570-480 a.C.,). No entanto, há uma linha clara de pensadores pagãos,
que defendem uma espécie de teísmo, de Platão aos Neoplatônicos da antiguidade
tardia - nesta linha encontramos, por exemplo, Plutarco (c.45-120 d.C.,),
Plotino (c.204–70 d. C.,), Porfírio (232–305 d.C.,) e Proclus (411–85 d.C.,).
Claro, muitos teístas contemporâneos irão insistir que o ser que os Neoplatônicos
chamam de “O Único” e “O Bom” difere de várias maneiras de seu Deus; mas também
houve incontáveis Cristãos ao longo dos séculos que foram preparados para dizer
que seu Deus é "O Único" e "O Bom" (OPPY, 2013, p. 12).
Duas coisas merecem ser ditas aqui antes de prosseguirmos. Primeira, “O Único”
e “O Bom” diferem de várias maneiras exatamente porque onde os filósofos pagãos
se aventuravam a dar “mais” detalhes dessa divindade evocada apenas pela razão,
eles se afastaram significativamente dos detalhes oriundos da revelação
especial na Escritura, seja na Revelação Judaica no AT, seja na Revelação
Cristã contida no AT e no NT, ou na revelação contida no Alcorão, nas Sunnas ou
nos Hadiths dos Muçulmanos.[1] A segunda é que existiram filósofos Cristãos que
se coadunaram com muitos aspectos oriundos do pensamento Grego sobre o tema, e
isso nos dois sentidos, tanto quando os filósofos pagãos acertaram e se aproximaram
significativamente da revelação especial, tanto quando os filósofos pagãos se
afastaram significativamente da revelação especial, como por exemplo, Orígenes.[2]
Contudo, esses filósofos Cristãos da Igreja Primitiva não tiveram o Cânon das Escrituras
devidamente estabelecido na época de seus tempos de vida e os pais pré-nicenos
não tinham nenhuma formulação doutrinária universal. Então, a influência da
filosofia Grega, do Neoplatonismo e até mesmo dos livros apócrifos causaram
impactos diversos em alguns dos escritos desses homens. Então vale destacar que
o Deus pessoal das tradições Teístas é O Uno (apenas no sentido Monoteísta) e é
O Bom (apenas no sentido de ser Todo Amoroso e Bondoso), mas sem os
penduricalhos exagerados desses filósofos que se chocam com a revelação
especial. Isso mostra que essa especulção do Oppy não tem tanto fundamento.
O
Professor e Filósofo, Kevin L. Flanery, especialista em Teologia Filosófica Antiga, prova que a realidade de Deus fora asseverada
em ricos detalhes pelos filósofos antigos. Depois de analisar as tradições
sobre Deus e sobre os deuses nas obras de Platão, inclusive a do Deus racional
e a do Deus intervencionista, ele afirma que existe
uma maneira de reconciliar essas duas vertentes da doutrina Platônica, levando
em consideração a maneira pela qual Platão defende a última. Nas Leis X
Platão argumenta que, para os deuses, não se preocupar com os detalhes
da vida pessoal seria incompatível com sua natureza. Se os artesãos humanos
sabem cuidar dos detalhes de seus próprios negócios, muito mais os deuses, que
“sendo bons, possuem todas as virtudes próprias de si mesmos para cuidar de
todas as coisas” (900d1–2). Uma vez estabelecido esse ponto, é fácil justificar
práticas cúlticas, desde que não envolvam os deuses em coisas incompatíveis com
sua natureza divina, como a injustiça (905d8-906d6). Dessa maneira, a
preocupação dos deuses com a humanidade se torna parte de sua própria racionalização
ou inteligibilidade. Argumentos desse tipo baseados nas características
naturais de Deus, é claro, terão um papel enorme na teologia filosófica
subsequente. A mais importante das características isoladas por Platão é a
bondade de Deus (veja, por exemplo, Timeu 29e1 - 3; Fedro 247a4-7;
República II.381b1–5.382e8–11). Com isso estabelecido, ele é livre para
argumentar filosoficamente também que todos devemos procurar a semelhança com
Deus (homoiosis theoi – Teeteto 176b1-3), uma espécie de
intervenção divina reversa (2010, p. 86).
Flannery também apresenta o pensamento de Aristóteles sobre o
tema. A teologia filosófica de Aristóteles tem muito em comum com a de Platão.
Sua abordagem teleológica da física e da cosmologia é igualmente incompatível
com o evolucionismo materialista que Platão critica nas Leis X (ver Física
VIII.1 e Metafísica I.8.988b22-8); e ele favorece uma
desmitologização da teologia (Metafísica XII.8.1074a38 - b14; Política
I.2.1252b26 - 7) sem negar que os deuses inferiores existem (Metafísica XII.8).
Aristóteles também sugere em vários lugares que ele não é totalmente contrário
à ideia de Deus como a Alma do Mundo (embora ele não tenha tempo para um
Artesão Divino). Por exemplo, em Metafísica XII.8, no final de sua
explicação de como o motor imóvel funciona através dos planetas e estrelas,
influenciando também eventos humanos (1074a25-31), ele diz que os antigos
tinham um pressentimento disso - isto é, que os corpos celestes “são divinos e
que o divino abraça toda a natureza” (1074b2 - 3). Na Metafísica XII
(especialmente 7 e 9), ele identifica Deus, "um ser vivo" (1072b29),
com nous (mente), um componente claro também da alma humana (ver também Metafísica
XII.9.1075a6 - 10 e Sobre a Alma III.5). E na Ética a Nicômaco X.8,
ele usa, como base de um argumento que a contemplação filosófica é a vocação
mais alta, a ideia de que os deuses cuidam dos assuntos humanos (1179a24-5).
Portanto, embora pareça que Aristóteles nunca fale de Deus como a Alma do Mundo
(veja, no entanto, Clemente de Alexandria, Protrepticus V.66.4), ele
certamente é a favor de um Deus intimamente ligado ao mundo.
Na Física VIII.5, no entanto, ele também fala
favoravelmente da Mente de Anaxágoras, na medida em que é "impassiva e sem
mistura [com o mundo]" (256b24-7; cp. Metafísica I.4.985a18). A
palavra anterior, especialmente (“impassivo” ou apathes) aparece em
várias outras passagens cruciais para a consideração atual (por exemplo, Metafísica
XII.7.1073a11; Sobre a Alma III.5.430a24, I.4.408b27 – 31), para que
possamos ter certeza de que o elogio de Aristóteles a Anaxágoras não é uma
observação perdida. Como Aristóteles pode sustentar que Deus é imanente e
também “impassivo e sem mistura?” Muito de seu argumento depende de uma
analogia extraída da geometria. Assim como o locus primário de poder e
influência em uma esfera rotativa é o seu eixo central, que, embora se mova
(transitivamente) as outras partes da esfera, permanece quieta, também o motor
imóvel permanece majestosamente impassivo, mesmo sendo a fonte da atividade do
universo (Física VIII.9.265b7 - 8; ver também Movimento dos Animais III).
Aristóteles combina essa ideia de poder imanente com a ideia de que Deus é uma
causa final, como “o objeto do desejo e o objeto do pensamento”, pois “se
movem, mas não são movidos” (Metafísica XII.7.1072a26 - 7) O resultado
final é uma concepção de Deus como uma força impulsora dentro do universo e um
objeto de desejo que atrai o homem para além dele.
Aristóteles também fala do motor imóvel como "pensamento pensando
a si próprio" (Metafísica XII.9.1074b33-5; ver também Ética
Eudemônica VII.12.1245b16-19) e foi criticado por colocar um Deus distante
e auto-absorvido. Mas isso é bastante irreconciliável com sua teoria geral e
deve ser resistido como uma possível interpretação. Aristóteles rejeita a noção
de que Deus possa pensar em algo que não seja ele mesmo precisamente porque
isso diminuiria seu poder (Metafísica XII.9.1074b34). O poder que
preocupa Aristóteles é o poder pelo qual Deus tem um efeito no mundo (Metafísica
XII.6.1071b12 - 32). (Na Física VIII.5, Aristóteles também fala da
Mente mencionada por Anaxágoras que "Ela só podia causar movimento da
maneira que causa sendo imóvel, e só pode governar não estando
misturado”- 256b26 - 7; ênfase adicionada.) Portanto, devemos conceber os
pensamentos de Deus sobre si mesmo como ligados à sua imanência (Metafísica I.2.983a8
- 10, III.4.1000b3-6). Aristóteles oferece uma explicação de como isso
funciona: assim como nossas intenções (internas) são seus objetos
externos menos sua matéria, Deus também se pensa nas coisas que dependem dele (Metafísica
XII.9.1047b38 - a5; também Sobre a Alma III.5.430a19-20). A
interpretação de Tomás de Aquino pareceria então correta, que é precisamente em
pensar em si mesmo que Deus sabe - e controla - todas as outras coisas (nas
seções 2614 - 16 da Metafísica) (Ibid, pp. 86, 87). Assim, apesar das
claras diferenças com a revelação especial e apesar do fato de estarem apenas
munidos da revelação geral e natural, os chamados filósofos pagãos se
aproximaram veementemente das nuances características do Deus das tradições
monoteístas. Sem deixar de mencionar que eles não negaram, em hipótese alguma,
a existência desse Ser tão magnífico que os arrebatavam em meditações
teoréticas contemplativas tão profundas e ricas, apesar de suas diversas
inexatidões.
Continua...
Referências
e notas:
[1] Com
isso não estou dizendo que o AT e o NT se harmonizam com as escrituras
Islâmicas. O que quero dizer é que essas três tradições evocam a ideia de uma
revelação especial do Deus criador do cosmos que difere em muitos sentidos do
quadro geral apresentado pelos filósofos pagãos.
[2] Por exemplo, o Neoplatonismo ensinava
que Deus é UNO, que paira acima do
dualismo e dele emana o NOUS,
semelhante ao LOGOS da teologia
defendida por Orígenes. Nessa visão de mundo, as almas dos indivíduos procedem
do NOUS, que é a alma do mundo, de onde
deriva o reino da matéria. Cada estágio, relativo a quantidade de ser que
possui, é inferior àquele que o precedeu. As almas, devido à queda que ocorreu
no mundo espiritual, ficaram desligadas de Deus e unidas a matéria (MONTEIRO,
2002 p. 36). Veja também como Orígenes afirma a espiritualidade de Deus e como
ele apresenta ter recebido clara influência de outros filósofos pagãos. Para
ele, Deus é espírito e simples. Usa o termo Pitagórico Mónada para descrever a pessoa de Deus junto com o termo Platônico Enéada. Para ele o Logos é a imagem da
bondade de Deus mas não o bem em si. Afirma então que o Logos está em uma
posição de subordinação (afirma aqui o subordinacionismo, uma heresia que seria
rejeitada posteriormente pelos Pais da Igreja) (Nicola Abbagnano, História da
Filosofia, Vol II). Contudo, vale destacar o que um dos maiores pesquisadores
da Patrística, David W. Bercot, afirma sobre essas especulações de Orígenes.
Ele meniona que a maioria dos ensinamentos de Orígenes eram bastante
harmoniosos com a ortodoxia da igreja pré-Nicena. No entanto, por causa de sua
mente brilhante, Orígenes apresentou uma série de especulações teológicas que a
maioria dos Cristãos considerou inadequadas. Deve ser lembrado que a quantidade
de dogmas definidos na igreja pré-nicena era muito pequena, e Orígenes foi
muito cuidadoso para não ensinar o contrário a qualquer dogma definido pela
igreja. Os críticos modernos de Orígenes freqüentemente citam seus pontos de
vista especulativos fora de seu contexto histórico, fazendo parecer que
Orígenes estava ensinando coisas como dogmas. No entanto, Orígenes deixou claro
que suas especulações não estavam sendo apresentadas como dogmas, mas como
pontos de diálogo e reflexão (1998, p. 487).
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