Uma
análise sobre a recente ascensão do Calvinismo no Brasil e uma exposição do que
ensina, de fato, o Arminianismo
Introdução
Do século 16 ao 18, a principal corrente no meio protestante
mundial era o que se convencionou chamar de Calvinismo. Foi somente a partir do
século 19 em diante que o Arminianismo, surgido no início do século 17, passou
a prevalecer como a principal corrente no meio protestante. Entretanto, tal
predomínio tem sofrido certos retrocessos nos últimos anos, por pelo menos três
razões.
Em primeiro lugar, há muitos evangélicos arminianos que sequer
conhecem de fato o Arminianismo. A maior demonstração disso está em grande
parte das pregações que ouvimos hoje em dia. Qualquer análise sobre o conteúdo
da teologia popular evangélica brasileira revelará, com enorme clareza, que
muito do que se tem esposado hoje em dia e recebe o nome de Arminianismo se
trata, na verdade, de uma distorção do verdadeiro Arminianismo. O que se ouve
em muitos púlpitos é mais Semipelagianismo – e, em casos mais graves, até Pelagianismo
– do que realmente Arminianismo.
Em segundo lugar, tivemos, nas últimas décadas, muitos livros e
artigos opondo-se ao Calvinismo na imprensa evangélica brasileira. Só que
muitos deles pecaram por confundir Calvinismo de forma geral com Calvinismo fatalista,
tornando seus argumentos facilmente rebatíveis por qualquer calvinista bem
treinado. Além disso, a quase totalidade desses textos dedicava-se muito mais a
falar contra o Calvinismo do que a explicar o que é realmente o Arminianismo.
Em terceiro lugar, a rejeição cada vez maior no meio evangélico à
onda triunfalista do neopentecostalismo, o que é em si uma atitude muitíssimo
boa, contribuiu involuntariamente para a ascensão do Calvinismo. Muitos
crentes, de “ressaca” com tantos hinos e mensagens centrados no homem, passaram
a buscar literaturas e mensagens que exaltassem mais a soberania divina e,
infelizmente, acabaram encontrando-as com mais frequência em sites de conteúdo
calvinista.
Ou seja, em linhas gerais, uma má compreensão do que é o Arminianismo
somada a uma aversão sadia de muitos evangélicos ao triunfalismo neopentecostal
têm feito com que muitos se voltem para o Calvinismo. E isso está acontecendo
até mesmo nas Assembleias de Deus, a maior denominação evangélica do país.
Arminius: uma vida marcada pela providência divina
Jakob Hermanszoon nasceu em 10 de outubro de 1559 na cidade de
Oudewater, na província de Utrecht, na Holanda, filho do casal Hermand
Jacobszoon, um ferreiro especialista em fazer armaduras, e sua esposa Engeltje,
ambos protestantes. Seu pai morreu de forma trágica no mesmo ano em que Jakob
nasceu, deixando sua mãe viúva e com filhos pequenos. Condoído da situação do
pequeno Jakob, um padre simpático ao protestantismo, chamado Teodoro Emílio,
sustentou a criança e seus estudos. Porém, quando o garoto já estava com 15
anos, seu benfeitor morreu. Deus, contudo, logo colocou outra pessoa na sua
vida: um homem chamado Rodolfo Sneillus, que, ao saber da história de Jakob,
resolveu adotá-lo e levá-lo para Marburg. Foi assim que, aos 16 anos, Jakob
ingressou na Universidade de Leiden.
Tudo ia bem, até que, no mesmo ano em que Jakob ingressava na
universidade, outra tragédia aconteceu. Em 1575, a sua cidade natal – que
quando Jakob nascera estava sob o domínio espanhol, mas havia se libertado
desse domínio e se tornado protestante – voltaria a ser atacada pelos
espanhóis. A invasão espanhola foi sangrenta, passando para a posteridade como
“Massacre de Oudewater”, no qual a mãe de Jakob, seus irmãos e demais parentes
foram mortos. Só Jakob sobraria de toda a sua família.
Em Leiden, o jovem protestante adotou a forma latinizada de seu
nome: em vez de Jakob Hermanszoon, passou a se chamar Jacobus Arminius. Ele
concluiu seus estudos em Leiden em 1582, mesmo ano em que foi a Genebra para
estudar com ninguém menos do que Teodoro Beza, amigo e sucessor do já falecido
João Calvino. Ali, porém, não permaneceu muito tempo, devido a controvérsias
decorrentes do seu uso de técnicas ramistas, que aprendera em Leiden. Essas
técnicas foram criadas pelo professor calvinista francês Pierre de la Ramée
(1515-1572) e eram ensinadas em algumas universidades protestantes. Ademais,
Arminius não concordava com o supralapsarianismo de Beza, sobre o qual
falaremos mais adiante.
De Genebra, Arminius seguiu para Basileia e de lá para Amsterdã,
onde recebeu o convite para pastorear, sendo ordenado ao pastorado em 1588.
Ganhou a fama de bom pastor e ensinador. Em 1590, casou-se com a jovem Lijsbet
Reael. Em 1603, após 15 anos de profícuo ministério, Arminius encerra suas
atividades como pastor para aceitar o cargo de professor na Universidade de
Leiden. Foi em Leiden que começaram os primeiros e históricos embates
teológicos da vida de Arminius, e o principal responsável pelos ataques
desferidos contra ele foi o teólogo e professor calvinista radical Franciscus
Gomarus (1563-1641).
O supralapsariano Gomarus e o reformador Arminius
A divergência entre Gomarus e Arminius se devia essencialmente à
questão dos Decretos de Deus. E para entendermos bem esse ponto, é preciso
antes explicar o que são Infralapsarianismo e Supralapsarianismo.
Calvinismo Infralapsariano é aquele que afirma que os decretos
divinos de eleição e condenação ocorreram após o Decreto da Queda. Já o
Supralapsariano assevera que os decretos divinos de eleição e condenação foram
determinados por Deus antes mesmo do Decreto da Queda – isto é, primeiro Deus
planejou que alguns se salvariam e outros se perderiam para depois determinar
do que eles seriam salvos (sic). Pois bem, Gomarus era adepto desse Calvinismo
radical supralapsariano, e Arminius era absolutamente contra o
Supralapsarianismo. A divergência começou exatamente aí. Entretanto, o debate
se intensificaria mais ainda quando Arminius acrescentou que a Confissão Belga
(1562) e o Catecismo de Heidelberg (1563), ambos documentos calvinistas,
precisavam de reformas. Gomarus cobrou de Arminius que explicasse que tipo de
reforma seria essa, mas este, em um primeiro momento, para evitar maiores
confrontos, se negou a dizer o que tinha em mente.
Após vários debates públicos entre Gomarus e Arminius, e entre
aquele e alguns alunos de Arminius, a controvérsia ultrapassou a instituição
onde lecionavam e chegou a outras universidades, até que Gomarus e Arminius
foram chamados a comparecer à Suprema Corte em Haia para apresentarem seus
argumentos, que dividiam os acadêmicos protestantes no país. Ao final da
exposição de cada um, a Suprema Corte, formada por oito magistrados, declarou
que as diferenças no que concernia à Doutrina da Predestinação, eram pequenas,
e por isso ambos deveriam aprender a conviver com essas diferenças. Arminius
acatou a resolução, mas Gomarus partiu novamente para o ataque.
Diante dos sucessivos ataques de Gomarus, Arminius pediu então
para que se formasse um assembleia para ouvi-lo, assembleia esta que foi
convocada para 30 de outubro de 1608. Nela, Arminius finalmente declarou que
alterações tinha em mente ao falar que a Confissão Belga e o Catecismo de
Heidelberg precisavam de reformas. Ele se disse contrário tanto ao Supralapsarianismo
quanto ao Infralapsarianismo, pois acreditava que ambos, no fundo, carregavam o
mesmo erro, e expôs sua crença na predestinação a partir da presciência divina,
apoiando-se em textos bíblicos.
Gomarus, por sua vez, teve sua permissão para falar à assembleia
em 12 de dezembro de 1608, ocasião em que preferiu atacar Arminius de forma
bastante agressiva. Além disso, ele não tentou rebater os argumentos de
Arminius biblicamente, se contentando apenas em enfatizar que seu colega estava
indo contra os estimados Catecismo de Heidelberg e Confissão Belga, ao que
Arminius responderia dizendo que nem mesmo esses dois importantes textos
estavam acima da Bíblia e, como produções meramente humanas, estavam sujeitas a
revisões e aperfeiçoamentos. O tom agressivo do discurso de Gomarus mais sua
aridez em termos de argumentos bíblicos contrastaram fortemente com o tom
conciliador e recheado de biblicismo de seu oponente, o que fez com que mesmo
alguns discordantes de Arminius lhe dessem razão.
Os dois discutiriam em outra assembleia nos dias 13 e 14 de agosto
de 1609, porém, quando já estava marcado outro debate para 19 de agosto, a
saúde de Arminius se debilitou e ele voltou a Leiden, onde faleceria em 19 de
outubro de 1609, vítima de tuberculose. Em seu enterro, foi honrado por seus
alunos. O conflito, entretanto, seguiria após sua morte, simplesmente porque o
“Efeito Arminius” rachara ao meio o Calvinismo na Holanda.
Os remonstrantes e a verdade sobre o Sínodo de Dort
Após a morte de Arminius, os ataques a seus ensinos continuaram,
tendo como alvo agora os seus seguidores. Logo, com o objetivo de se defenderem
desses ataques, 46 pastores e teólogos arminianos resolveram assinar um
documento em que expunham e explicavam seu pensamento. Esses arminianos receberam
o nome de “Remonstrantes”, expressão derivada do vocábulo holandês
“remonstrantse”, que significa “reclamante” ou “protestante”.
O documento em defesa do Arminianismo continha cinco pontos e foi
elaborado em janeiro de 1610. A repercussão do seu conteúdo foi, em um primeiro
momento, muito positiva diante das autoridades holandesas, para indignação dos
antiarminianos. O governo holandês entendera que as diferenças doutrinárias
entre calvinistas e arminianos não eram irreconciliáveis ou intoleráveis. Mas,
pouco tempo depois, essa visão mudaria devido à mudança do contexto político
nas terras baixas.
Em primeiro lugar, o principal desafeto do príncipe Maurício de
Nassau (1567-1625), seu ex-amigo e braço direito Johan van Oldenbarnevelt
(1547-1619), advogado-geral da Holanda, havia aderido ao Arminianismo.
Oldenbarnevelt era apoiado pela maioria das províncias marítimas holandesas,
onde se concentrava a burguesia do país, que havia aderido majoritariamente ao
Arminianismo. Essa maioria apoiava Oldenbarnevelt “em sua oposição ao poder
crescente de Maurício de Nassau” (GONZÁLES, Justo L., Uma História do
Pensamento Cristão – Da Reforma Protestante ao Século 20, vol. 1, 2004, São
Paulo, Cultura Cristã, p. 286). Já as demais províncias marítimas e as rurais eram
fiéis a Nassau e apoiavam majoritariamente o Calvinismo.
Em segundo lugar, a Holanda estava, já havia algum tempo, em
guerra com a Espanha, e os calvinistas convenceram Nassau que uma das formas de
garantir que os católicos espanhóis não encontrariam guarida em solo holandês
seria fortalecendo o Calvinismo, pois o Arminianismo supostamente daria brechas
para a “doutrina dos jesuítas” (missionários da contrarreforma católica). Não
por acaso, o principal xingamento calvinista aos arminianos na Holanda era designá-los
como “jesuítas”.
Por essas razões, Nassau convocou o Sínodo Nacional de Dordrecht
(“Dort”, em inglês), mais conhecido como Sínodo de Dort (1618-1619), para
condenar o Arminianismo. Sim, para condenar, porque o Sínodo já nasceu com esse
propósito. Seu objetivo não era analisar honestamente a questão, mas elaborar
um texto de condenação.
O referido sínodo reuniu calvinistas da Holanda e de oito países
da Europa, que condenaram os cinco pontos dos remonstrantes, fazendo surgir, em
resposta a estes, os cinco pontos calvinistas, os quais, formando
posteriormente um acróstico, receberiam o nome de Tulip (“tulipa”, em inglês):
Total Depravity (“Depravação Total”), Unconditional Election (“Eleição
Incondicional”), Limited Atonement (“Expiação Limitada”), Irresistible Grace
(“Graça Irresistível”) e Perseverance of the Saints (“Perseverança dos
Santos”). Esses 5 pontos são chamados oficialmente de “Cânone de Dort”. O
detalhe é que algumas dessas condenações distorcem o posicionamento dos
remonstrantes, que, por exemplo, nunca negaram a Depravação Total. Isso
aconteceu porque os remonstrantes sequer tiveram a oportunidade de ser
realmente ouvidos no sínodo.
Para dar uma aparência de justiça, o sínodo contou com alguns
depoimentos de remonstrantes, mas sob as seguintes regras: em primeiro lugar,
os remonstrantes não poderiam participar das reuniões e de seus debates – eles
ficavam em uma outra sala, esperando serem chamados pelo presidente do sínodo
para falar apenas o que fosse pedido –; em segundo lugar, depois de darem um
depoimento, voltavam imediatamente à tal sala, sem terem direito à tréplica; em
terceiro lugar, os remonstrantes não escolheram seus representantes – o sínodo
é que os escolheu –; em quarto lugar, os remonstrantes só poderiam responder em
latim; e, finalmente, em quinto lugar, todos os teólogos arminianos tiveram seu
direito de voto impedido.
Como se não bastasse, o presidente sinodal era John Bogerman
(1576-1637), um calvinista que chegara ao encontro com fama de defender a pena
de morte aos “hereges arminianos”. Aliás, alguns calvinistas que estavam no
sínodo defendiam o mesmo, embora não fossem maioria, enquanto todos os
remonstrantes pediam “a tolerância e a indulgência em relação às diferenças de
opinião sobre assuntos religiosos” (CUNNINGHAM, William, Historical Theology,
vol. 2, p. 381). Bogerman também fora aquele que, juntamente com Gomarus, em um
dos debates deste com Arminius, afirmou: “As Escrituras devem ser interpretadas
de acordo com o Catecismo de Heidelberg e a Confissão Belga”. Ao que Arminius
respondera: “Como alguém poderia afirmar mais claramente que eles estavam
decididos a canonizar estes dois documentos humanos e instituí-los como os dois
bezerros idolátricos em Dã e Berseba?” (HARRISON,
A. W., The Beginnings of Arminianism to the Synod of Dort, Imprensa da
Universidade de Londres, 1926, Londres, pp. 87 e 88).
O resultado do Sínodo de Dort foram cerca de 200 pastores
destituídos de suas funções e exilados, e Oldenbarnevelt condenado à
decapitação como traidor do país. Uma verdadeira vergonha, da qual se
arrependeriam depois os pastores e teólogos Daniel Tilenus (1563-1633), Thomas
Goad (1576-1638) e John Hales (1584-1656), que participaram do Sínodo de Dort,
mas depois se tornaram arminianos. Somente após a morte de Maurício de Nassau,
quando o príncipe Frederico Henrique de Nassau (1584-1647) assumiu seu lugar,
os arminianos foram autorizados a retornar à Holanda. Um deles, Simon
Episcopius (1583-1643), aluno de Arminius, substituiria Gomarus na cadeira de
professor de Teologia na Universidade de Leiden. Infelizmente, após a
condenação sofrida, os seguidores originais de Arminius na Holanda acabaram,
com o passar do tempo, se afastando progressivamente do pensamento original do
seu mentor e dos primeiros remonstrantes. Arminius, por exemplo, nunca negou a
Depravação Total ou a Doutrina do Pecado Original, nem os primeiros
remonstrantes, porém alguns de seus futuros seguidores, como Philipp van
Limborch (1633-1712), acabariam negando ambos. Hugo Grotius (1583-1645),
seguidor de Arminius, defenderia mais à frente a Teoria Governamental no lugar
da Doutrina da Substituição Penal de Cristo, adotada tanto pelo Arminianismo
Clássico como pelos calvinistas. A TG considera que o sacrifício de Cristo
apenas mostrou ao mundo que as leis divinas foram quebradas e sua penalidade
paga, e não que Cristo realmente pagou a penalidade pelos pecados dos
indivíduos. Ou seja, no final das contas, os remonstrantes de hoje, na Holanda,
não têm nada a ver com o Arminianismo Clássico. Eles são, inclusive, liberais
em teologia. Porém, infelizmente, muitos calvinistas cometem a desonestidade de
atacar os arminianos acusando-os de desvios doutrinários que, na verdade, foram
cometidos por gerações seguintes dos remonstrantes. Apesar desses desvios das
gerações subsequentes, o Arminianismo original permaneceu vivo e logo se
espalhou pela Europa, mas sempre sendo minoritário. Até que, no século 18, o
movimento metodista provocaria uma reviravolta, tornando o Arminianismo a
principal corrente protestante do mundo nos séculos seguintes. Mas, antes de
vermos como se deu essa extraordinária reviravolta, vejamos o que ensina, de
fato, o Arminianismo.
O que ensina, de fato, o Arminianismo Clássico
Em linhas gerais, o que ensinava Arminius? O que é o Arminianismo?
Em primeiro lugar, o Arminianismo ensina, à luz da Bíblia, que
Deus determinou salvar algumas pessoas e condenar as demais a partir de Seu
pré-conhecimento sobre a fé ou a incredulidade futuras dessas pessoas. Ou seja,
a eleição ou a condenação divinas não são decisões arbitrárias de Deus, mas
decisões tomadas por Deus desde a eternidade com base em Sua presciência em
relação às escolhas futuras das pessoas. Escreveu Arminius: “Deus determinou
salvar e condenar certas pessoas em particular. Este decreto tem seu fundamento
no pré-conhecimento de Deus, pelo qual Ele conheceu desde toda a eternidade
aqueles indivíduos que, por meio da Sua graça preventiva, creriam; e por meio
de sua graça subsequente, perseverariam; [...] e por esse mesmo pré-conhecimento,
Ele semelhantemente conheceu aqueles que não creriam e não perseverariam”
(GONZÁLES, Ibid., p. 285).
Paulo afirma: “...os que dantes conheceu, também os
predestinou...” (Rm 8.29,30). E Pedro assevera que somos “eleitos, segundo a
presciência de Deus Pai” (1Pe 1.2). Portanto, os calvinistas erram ao vincular
a presciência divina à causalidade. Para ser mais preciso: eles erram ao
afirmar que Deus conhece previamente todas as coisas porque predestinou todas
as coisas. Ora, o texto bíblico é claro: a presciência vem antes da
predestinação e da eleição. Estas decorrem daquela, e não o contrário. Deus
conhece previamente tudo porque é onisciente, e não porque predeterminou tudo.
Deus não precisa predeterminar tudo para saber de tudo. Sim, Ele predetermina muitas
coisas, mas não tudo.
Além desses textos bíblicos que colocam claramente a presciência
antes da predestinação e da eleição, há muitos textos bíblicos que falam da
onisciência divina de forma geral sem sugerir que ela decorre de uma
predeterminação de todas as coisas. Salmos 139.2-4 é um deles. Além disso, a
maior prova de que a onisciência divina não é fruto de predeterminação é que a
Bíblia diz que Deus conhece até mesmo o futuro contingente condicional. O
futuro contingente condicional não é aquilo que acontecerá, mas aquilo que
aconteceria se as circunstâncias e as decisões fossem outras. Ou seja, Deus não
sabe só o que vai acontecer, mas também “o que aconteceria se”. O exemplo
clássico desse tipo de conhecimento divino é o da oração de Davi acerca do povo
de Queila (1Sm 23.1-13). Davi perguntou a Deus se era verdade o que tinha
ouvido de que Saul estava descendo à cidade de Queila para pegá-lo, e Deus
respondeu que sim, num caso clássico de conhecimento do futuro causal. Porém,
na sequência, Davi perguntou também se o povo de Queila, mesmo depois de tudo
que Davi fizera por eles contra os filisteus, mesmo depois de recebê-lo tão bem
com os seus homens, o trairiam mais à frente, entregando-o a Saul na primeira
oportunidade; e Deus respondeu que sim, que entregariam, e Davi então saiu
dali, de maneira que o povo de Queila nunca traiu a Davi.
Esse é um caso de conhecimento de um futuro contingente
condicional. Eles não fizeram, mas Deus sabia que “eles fariam se”. Ora, se há
um futuro contingente condicional, e Deus o conhece, isso significa que Ele não
precisa predeterminar todas as coisas para saber todas as coisas. Ademais,
leiamos mais uma vez as palavras de Paulo e Pedro: “...os que dantes conheceu,
também os predestinou...” (Rm 8.29,30); e “eleitos, segundo a presciência de
Deus Pai” (1Pe 1.2). Ou seja, a presciência vem primeiro. A predestinação e a
eleição se deram com base na presciência divina. Logo, você não é salvo porque
foi eleito; você é eleito porque foi salvo em Cristo.
Perceba que a Bíblia sempre fala de predestinação à vida eterna
“em Cristo”. A Epístola de Paulo aos Efésios, que é a que mais fala em
predestinação, mostra exatamente isso. Aliás, os termos “em Cristo Jesus”, “no
Senhor” e “nEle” ocorrem 160 vezes nos escritos de Paulo, sendo que 36 vezes só
em Efésios, onde está o recorde. Ou seja, se queremos entender bem Efésios,
devemos começar a atentar para a palavra-chave dessa epístola: “em Cristo”.
Ora, mais de uma vez é dito em Efésios 1 que a predestinação ocorre “em
Cristo”. Ou seja, a predestinação e a eleição não são para estar em Cristo.
Elas são para os que estão em Cristo.
Para aqueles que estão “em Cristo” estão destinadas desde a
fundação do mundo todas aquelas bênçãos listadas em Efésios 1, 2 e 3; e a quem
não estiver em Cristo, está destinada desde a fundação do mundo a perdição. Se
você estiver nEle, Seu destino é o Céu; se não estiver nEle, o Inferno. O
critério é estar nEle. Como afirma Paulo, Deus nos elegeu “para que fôssemos
santos e irrepreensíveis diante dEle” (Ef 1.4), mas Cristo só vai “vos
apresentar santos, e irrepreensíveis, e inculpáveis, se, na verdade,
permanecerdes fundados e firmes na fé e não vos moverdes da esperança do
Evangelho” (Cl 1.22,23). Está claro: a eleição é condicional. E qual a
condição? Estar em Cristo: “...nos elegeu nEle...” (Ef 1.4). A Eleição,
portanto, é um decreto divino anterior à salvação e fruto da graça, soberania e
misericórdia divinas manifestadas em Cristo, o qual é a condição da nossa
eleição.
Em segundo lugar, o Arminianismo ensina, à luz da Bíblia, a
Doutrina da Depravação Total do ser humano, isto é, que o ser humano é tão
depravado espiritualmente que precisa da graça de Deus tanto para ter fé como
para praticar boas obras. Escreve Arminius: “Mas em seu estado caído e pecaminoso,
o homem não é capaz, de e por si mesmo, pensar, desejar ou fazer aquilo que é
realmente bom; mas é necessário que ele seja regenerado e renovado em seu
intelecto, afeições ou vontade, e em todos os seus poderes, por Deus em Cristo
através do Espírito Santo, para que ele possa ser capacitado corretamente a
entender, avaliar, considerar, desejar e executar o que quer que seja
verdadeiramente bom. Quando ele é feito participante desta regeneração ou
renovação, eu considero que, visto que ele está liberto do pecado, ele é capaz
de pensar, desejar e fazer aquilo que é bom, todavia não sem a ajuda contínua
da graça divina” (ARMINIUS, Jakob, A Declaration of Sentiments, Works, vol. 1,
p. 664, traduzido em Revista Enfoque Teológico, vol. 1, no 1, 2014, FEICS, p.
105).
Ou seja, o homem não regenerado é escravo do pecado e incapaz de
servir a Deus com suas próprias forças (Rm 3.10-12; Ef 2.1-10). O Arminianismo
nunca ensinou que, por ainda ter em si resquícios da imagem de Deus, o homem
tem a capacidade de, mesmo no estado caído, corresponder com arrependimento e
fé quando Deus o atrai a si. Não, a iniciativa é sempre de Deus, já que o
homem, em seu estado caído, não pode e não quer tomar iniciativa. À luz da
Bíblia, o Arminianismo sempre defendeu que é através da graça preveniente que a
depravação total, que resulta do pecado original, pode ser suplantada, de
maneira que o ser humano poderá, então, corresponder com arrependimento e fé
quando Deus o atrair a si. O livre-arbítrio é decorrente da ação da graça preveniente.
Vem de Deus a capacidade de arrepender-se e ter fé para ser salvo. Em terceiro
lugar, à luz da Bíblia, o Arminianismo ensina que a graça divina pode ser
resistida. Como afirma Arminius: “Creio, segundo as Escrituras, que muitas
pessoas resistem ao Espírito Santo e rejeitam a graça que lhes é oferecida”
(ARMINIUS, Ibid., p. 664 in Revista Enfoque Teológico, Ibid., p. 108). São
inúmeros os textos bíblicos que deixam clara a possibilidade de resistir à
graça divina (Gn 4.6,7; Dt 30.19; Js 24.15; 1Rs 18.21; Is 1.19,20; Sl 119.30;
Mt 23.37; Lc 7.30; At 7.51; 10.43; Jo 1.12; 6.51; 2Co 6.1; Hb 12.5).
É equivocado pensar que Deus não é absolutamente soberano se
concede ao homem, através de Sua graça preveniente, o livre-arbítrio, isto é,
uma vontade livre para escolher ou não a Salvação. Ora, um deus que no fundo
manipula as decisões dos seres humanos ao invés de, pela Sua graça,
conceder-lhes a capacidade de livremente ter fé e se arrepender para
convidá-los a Cristo, não pode ser plenamente justo. É verdade que ninguém
merece a Salvação, mas se Deus resolver salvar uns e condenar outros sem
conceder uma possibilidade real de escolha para Suas criaturas, estará
manchando Sua justiça. O atributo divino da soberania deve estar em perfeita
harmonia com o Seu caráter, que é santo e justo (Is 6.3). Os calvinistas gostam
de citar, em favor de sua crença em uma graça irresistível, João 6.44, onde
Jesus afirma: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, o não trouxer;
e eu o ressuscitarei no último dia”. Só que o termo traduzido aqui como
“trouxer” é, no grego, elkõ, que, segundo o tradicional léxico de Strong, tem
mais o sentido de “atrair”, “induzir alguém a vir”. Ou seja, Deus atrai; Ele
não força. Ele não violenta a liberdade humana concedida pela Sua graça e
soberania. Jesus disse que os que vêm a Ele não são forçados, mas atraídos a
Ele (Jo 12.32).
Em quarto lugar, o Arminianismo entende e sustenta, à luz da
Bíblia, que Cristo morreu por todos (Jo 3.16 e 6.51; 2Co 5.14; Hb 2.9; 1Jo
2.2), mas Sua obra salvífica só é levada a efeito naqueles que se arrependem e
crêem (Mc 16.15,16; Jo 1.12). Trocando em miúdos: a Expiação de Cristo é
suficiente, mas só se torna eficiente na vida daqueles que sinceramente se
arrependem de seus pecados e aceitam Cristo como único e suficiente Senhor e
Salvador de suas vidas. Trata-se, portanto, de uma Expiação Universal
Qualificada, e não de uma Expiação Limitada.
Conquanto existam passagens bíblicas que afirmam que Cristo morreu
pelas ovelhas (Jo 10.11,15), pela Igreja (At 20.28 e Ef 5.25) ou por “muitos”
(Mc 10.45), a Bíblia também afirma claramente em muitas outras passagens que a
Expiação é universal em seu alcance (Jo 1.29; Hb 2.9 e 1Jo 4.14), o que deixa
claro que as passagens que dão uma ideia de ela ter sido limitada nada mais são
do que referências à eficácia da Expiação. Ou seja, a Expiação de Cristo foi
realizada em prol de toda a humanidade, mas só os que a aceitam usufruem de sua
eficácia.
Os que creem em Cristo são obviamente associados à obra expiadora
(Jo 17.9; Gl 1.4; 3.13; 2Tm 1.9; Tt 2.3; 1Pe 2.24), mas a Expiação é universal
(1Jo 2.2). E a eficácia não está na salvação de todos, mas na consecução da
Salvação. O fato de a Expiação só ter sido aceita e aplicada em muitos e não em
todos não significa que sua eficácia é comprometida. O fato de muitos
usufruírem dela já demonstra sua eficácia. Ela só não seria eficaz se ninguém
se salvasse por ela. Se alguém foi salvo por ela, esta foi eficiente. Não houve
“desperdício” pelo fato de seu alcance ser universal, mas nem todos serem
salvos. Além disso, se crermos que a Expiação de Cristo é limitada, o que seria
um sacrifício que proporcionasse uma Expiação Ilimitada? Jesus sofreria um
pouco mais na cruz? Há casos de arminianos que creem em uma Expiação Limitada
com base na presciência divina, o que apresenta certa coerência, porém o
Arminianismo Clássico nunca defendeu a Expiação Limitada justamente porque não
só há passagens bíblicas claras sobre o alcance universal da Expiação como
também uma Expiação Limitada é uma contradição ao ensino bíblico de que Deus
não faz acepção de pessoas (Dt 10.17 e At 10.34). Deus é soberano, mas isso não
significa dizer que Ele fará alguma coisa que contradiga Seu caráter santo e
amoroso. Lembremos que uma hermenêutica prudente interpreta uma passagem ou
passagens observando o contexto geral sobre o assunto na Bíblia. A Bíblia se
explica por meio dela mesma. Portanto, se ela afirma que Deus é santo, justo e
amor, e não faz acepção de pessoas; e que Deus quer que todos se salvem e
cheguem ao pleno conhecimento da verdade (1Tm 2.3,4); e que a Expiação foi por
“todos” (1Tm 2.6; Hb 2.9); logo as passagens em que há alusão a “muitos” devem
ser interpretadas à luz dessas outras. O resultado é que as passagens que
aludem a “muitos” não se referem ao alcance da Expiação, que é universal, mas à
eficácia dela para os “muitos” que a receberam por fé.
Não se pode simplesmente desconsiderar o significado óbvio dos
textos sem ir além da credibilidade exegética. Quando a Bíblia diz que “Deus
amou o mundo” (Jo 3.16) ou que Cristo é “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado
do mundo” (Jo 1.29) ou que Ele é “o Salvador do mundo” (1Jo 4.14), significa
isso mesmo. Em nenhum texto o vocábulo “mundo” se refere à Igreja ou aos
eleitos. Escreve o apóstolo João: “E Ele é a propiciação pelos nossos pecados,
e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1Jo 2.2). Ou
como disse o teólogo H. C. Thiessen: “Concluímos que a Expiação é ilimitada no
sentido de estar à disposição de todos, e é limitada no sentido de ser eficaz
somente para aqueles que crêem. Está à disposição de todos, mas é eficiente
apenas para os eleitos” (Lectures in Sistematic Theology, Grand Rapids, 1979).
Finalmente, em quinto lugar, o Arminianismo entende e sustenta, à luz da
Bíblia, que o ser humano pode cair da graça, mas que tal coisa não é tão fácil
de acontecer como se pensa. O próprio Arminius preferiu deixar em aberto essa
questão, isso porque há muitos textos bíblicos que enfatizam a perseverança dos
santos e há muitos outros que sugerem a possibilidade de cair da graça, de
eventualmente se perder a salvação (Mt 24.12,13; Lc 9.62 e 17.32; Jo 15.6; Rm
11.17-21; 1Co 9.27; Gl 5.4; Ap 3.5; 1Tm 1.19 e 4.1; 2Tm 2.10,12; Hb 3.6,12,14;
2Pe 2.20-22; 1Co 15.1-2 e 2Co 11.3-4). Escreveu Arminius: “Nunca ensinei que um
verdadeiro crente pode, total ou finalmente, cair da fé e perecer. Porém, não
vou esconder que há passagens das Escrituras que me parecem ensinar isso”
(ARMINIUS, Works, volume 1, p. 131).
De forma geral, sabemos que é muito difícil acontecer de um crente
perder a salvação ao final, mas não impossível, razão pela qual a Bíblia insta
para que o cristão cultive sempre sua vida espiritual, fortalecendo-se em Deus
para perseverar até o fim (Ef 6.10-18). O fato de sabermos que temos segurança em
Cristo não deve nos levar a relaxar em nossa vida espiritual, pois tal atitude
pode, se não tomarmos cuidado, nos levar, mais à frente, a perecermos
espiritualmente.
Nem Pelagianismo, nem Semipelagianismo
Portanto, o Arminianismo não tem absolutamente nada a ver com
Semipelagianismo e muito menos com Pelagianismo, como acusam desonestamente
calvinistas mal informados – ou até mal intencionados. O monge Pelágio da
Bretanha (350-423), como sabemos, não acreditava nas doutrinas bíblicas do
Pecado Original, da Depravação Total e da Graça Preveniente, esposadas e
defendidas tanto por calvinistas como por arminianos.
Mas, a acusação mais comum que tem sido feita contra os arminianos
é que eles, não obstante não serem pelagianos, seriam semipelagianos, acusação
igualmente falsa. O Semipelagianismo surgiu logo após a condenação do
Pelagianismo, quando alguns cristãos do quinto século, ao lerem os argumentos
de Agostinho contra Pelágio, concordaram que Pelágio havia incorrido em grave
heresia, mas consideraram também que Agostinho havia exagerado um pouco em sua
contra-argumentação às heresias pelagianas. Pelo fato de esses cristãos
discordantes admirarem muito Agostinho, há quem prefira até chamá-los de
“semiagostinianos”, mas prefiro usar aqui a nomenclatura tradicional
“semipelagianos”, porque é como são mais conhecidos.
Diziam os semipelagianos, encabeçados pelo monge e teólogo francês
João Cassiano (360-435), que os erros de Agostinho em seu embate com Pelágio
foram dois: primeiro, seu conceito de predestinação, no que estavam certos; e
segundo, sua defesa da Depravação Total, no que estavam completamente
equivocados. Os semipelagianos não negavam o pecado original – isto é, o pecado
herdado de Adão e Eva, a natureza pecaminosa etc –, mas diziam que, mesmo após
a Queda, o ser humano ainda tinha em si resquícios da volição pré-Queda, um
livre-arbítrio remanescente, que o possibilitava, sem precisar de uma graça
preveniente, responder com fé e arrependimento à pregação do Evangelho. Para
eles, Deus poderia até dar início à fé em alguns casos, mas em muitos deles, ou
na maioria, era o próprio homem que dava o initium fidei, o primeiro passo para
a Salvação. O Semipelagianismo, após muitas discussões, foi condenado no ano
529 pelo Concílio de Orange. Entretanto, essa condenação se aplicou apenas à
oposição dos semipelagianos à Doutrina Bíblica da Depravação Total. O mesmo
concílio condenou a crença de que Deus predestinou o mal ou pessoas ao inferno.
Ou seja, o que prevaleceu na Igreja, desde o século 6 em diante, foi uma
Soteriologia que aceitava a Depravação Total, mas negava o conceito de
predestinação de Agostinho, o qual seria ressuscitado apenas 1,1 mil anos
depois por Lutero.
Lutero: de “calvinista”, no início, a “arminiano” no final da vida
Lutero viveu em uma época em que a Igreja Católica já tinha se
desviado da Soteriologia Bíblica, passando a dar ênfase mais às boas obras do
que à graça de Deus, e ainda explorando essa supervalorização das obras em um
contexto idolátrico. Lutero confrontou contundentemente esses erros, porém, em
sua primeira fase, o fez indo um pouco para o outro extremo, pregando uma
Soteriologia que resgatava e valorizava maravilhosamente a graça, mas que, por
outro lado, desprezava um pouco o lugar da responsabilidade humana. Isso
ocorreu porque sua fonte inicial não eram só as Escrituras, mas Agostinho. Por
ser de origem agostiniana, Lutero acabou sendo “calvinista” antes de Calvino.
Aliás, Calvino desenvolveu sua Soteriologia inspirado, inconfessadamente, nos
primeiros ensinos de Lutero sobre predestinação.
Muitos se esquecem, porém, que, após escrever Da Vontade Cativa
(1525), obra endereçada a Erasmo de Roterdã na qual defende a predestinação
agostiniana, Lutero “evitou progressivamente a doutrina especulativa da
predestinação, [...] preferindo se focar no ministério da Palavra e
sacramentos, aos quais a graça está ligada, e dando progressiva proeminência à
vontade redentiva universal de Deus” (BAVINCK, Herman, Reformed Dogmatics,
volume 2, 2004, Baker Academic, p. 356). Nessa segunda fase, Lutero se tornaria
primeiro um “calvinista compatibilista” (explicarei o que é isso mais à
frente), combatendo fortemente os “calvinistas fatalistas” antinomianos;
depois, escreveria contra a predestinação dupla (a crença de que Deus predestinou
tanto os que irão se salvar quanto os que irão se perder); mais à frente,
deixaria de defender também a Expiação Limitada (que defendera em Comentário
aos Romanos, 1516) para defender a Expiação Ilimitada (o que fez em Sermon for First Sunday in Advent,
1533); e voltaria também atrás ao defender a possibilidade do salvo decair da
graça nos artigos 42 a 45 dos Artigos de Esmalcade, escritos por ele em 1537
como resumo de toda doutrina luterana. Isto é, Lutero terminaria sua vida se
opondo a 3 ensinos que se tornariam depois 3 dos 5 pontos da Tulip calvinista.
Ademais, Felipe Melanchton, sucessor de Lutero à frente do luteranismo, era, na
prática, um “arminiano” antes de Arminius.
Portanto, uma análise honesta da história nos mostra que o que
convencionou-se chamar de “Calvinismo” nunca foi a posição dominante na
História da Igreja desde a sua fundação até hoje. O primeiro a propor as teses
que seriam chamadas, em um futuro distante, de “Calvinismo“ foi, como vimos,
Agostinho, e isso só no quinto século. Nenhum outro Pai da Igreja, antes ou
depois de Agostinho, esposou o “Calvinismo”; e a Igreja, após Agostinho, não
aderiu a seus posicionamentos “calvinistas”. O Concílio de Orange, como vimos,
condenou a predestinação divina do mal; e os Concílios de Kiersy (853) e de
Valença (855) afirmariam a predestinação pela presciência divina. Ou seja, nos
primeiros 400 anos da Igreja, não houve “calvinistas”; e de Agostinho a Lutero,
que seria o próximo “calvinista” da história (e, mesmo assim, temporariamente),
passaram-se 1,1 mil anos sem “calvinistas”. Tomás de Aquino, por exemplo, nunca
foi “calvinista”, como alguns calvinistas forçosamente tentam classificá-lo,
pois defendeu explicitamente a predestinação com base na presciência divina.
Mesmo no protestantismo, o Calvinismo não teve um reinado absoluto: com 20 anos
de Reforma, Lutero e Melanchton abandonam o “Calvinismo”; 65 anos depois,
surge, com Arminius, uma oposição mais forte ao Calvinismo; e desde o século
19, o Arminianismo é maioria entre os evangélicos no mundo. Ou seja, o que é
conhecido como Arminianismo não é só um posicionamento que tem mais solidez
bíblica como também é aquele que melhor representa o real posicionamento da
Igreja sobre a questão soteriológica ao longo da história.
Quanto à reviravolta arminiana no meio protestante nos últimos
séculos, ela se deu principalmente devido à pregação e à pena de dois grandes
homens do século 18: John Wesley e seu teólogo e amigo John Fletcher.
Wesley, John Fletcher e a reviravolta arminiana
Enquanto a Igreja Anglicana (igreja oficial inglesa) se tornaria
majoritariamente arminiana, o Calvinismo seria a corrente prevalecente nas
primeiras igrejas não-oficiais da Inglaterra. Porém, quando surgiu o movimento
metodista, seus dois principais líderes, ambos oriundos da Igreja Anglicana, se
dividiam nessa questão: John Wesley (1703-1791) era arminiano e George
Whitefield (1714-1770), calvinista. Após discutirem publicamente sobre o
assunto sem chegar a uma solução, ambos resolveram deixar essa questão para trás
em prol da unidade e avanço da obra de Deus, fazendo o seguinte pacto:
Whitefield prometeu nunca mais falar mal de Wesley quanto a essa diferença
doutrinária e também não aceitar nunca uma crítica de alguém a seu amigo por
causa dessa diferença, e Wesley se comprometeu a fazer o mesmo; e quem morresse
primeiro, o outro pregaria em seu enterro. Ambos seguiram à risca o acordo.
Porém, no ano da morte de Whitefield, a corrente calvinista dentro
do metodismo começaria novamente a confrontar seu líder por causa do
Arminianismo, de maneira que Wesley, juntamente com o principal teólogo do
metodismo no século 18, John Fletcher, resolveu escrever uma série de artigos
defendendo o Arminianismo à luz da Bíblia e expondo equívocos do Calvinismo.
Esses artigos, principalmente os de Fletcher, impuseram uma derrota pública e
poderosa aos calvinistas na Inglaterra no final do século 18, uma vez que
estes, à época, não conseguiram responder à altura aos argumentos de Wesley e
Fletcher.
Um dos opositores calvinistas, o talentoso compositor Augustus
Toplady (1740-1778), sem argumentos diante da devastadora resposta de Wesley a
seu resumo da obra do calvinista italiano Jerônimo Zanchi (século 16), passou a
xingar Wesley em profusão. O líder metodista, indignado com tantos ataques
baixos, pessoais e sem sentido, escreveu: “Conheço muito bem senhor Augustus
Toplady, mas não luto com limpadores de chaminés. É um combate demasiadamente
sujo para que me aproxime dele. Não conseguiria nada mais que manchar os dedos.
Li suas breves páginas, e não perderei tempo com isso. Vou deixar esse assunto
com o Sr. [Walter] Sellon. Não poderia cair em mãos melhores”.
Infelizmente, muitos calvinistas usam essas palavras duras de
Wesley para dizer que houve “troca mútua de ofensas”, o que é uma inversão
total dos fatos e do senso das proporções. Essa foi a única resposta dura de
Wesley a Toplady, e ela só foi emitida depois de o líder dos metodistas receber
uma série de ataques pessoais e absurdos de Toplady. Antes dessa resposta dura
e lacônica de Wesley, Toplady xingara o líder do metodismo, por exemplo, de
“Papa João”, “pregador de doutrinas perniciosas”, “sofista”, “jesuíta”,
“mentiroso”, “pelagiano”, “blasfemo”, “maniqueu”, “pagão”, “velho gambá” e
“representante do ignóbil papel de vil e aleivoso assassino”. Isso é só uma
pequena amostra. Toplady chegou a escrever nada menos que 30 páginas (sic) com
ofensas desse nível contra Wesley, pelo simples fato deste defender
biblicamente o Arminianismo (LELIÈVRE, Mateo, John Wesley – Sua Vida e Obra, Editora
Vida, 1997, pp. 251 e 260). Ou seja, não houve uma troca mútua de ofensas.
Houve um ofensor e um ofendido. Ao final de sua tradução à obra de Zanchi,
Toplady escrevera o seguinte resumo: “A suma de tudo é esta: uma entre 20
pessoas da humanidade (por exemplo) é eleita; as outras 19 são reprovadas. Os
eleitos serão salvos, façam o que fizerem; os reprovados serão condenados,
ainda que façam o que puderem para que isso não aconteça. Amado leitor, creia
nisso ou seja condenado. Em testemunho da verdade, assino-me: A. T. [Augustus
Toplady]” (LELIÈVRE, Ibid., p. 251). Logo, Wesley resolve escrever dois
documentos, um deles de oito páginas, onde rebate os equívocos calvinistas
apresentados na obra de Zanchi e resume a posição arminiana. Foram esses
documentos, que não traziam nenhuma ofensa pessoal e eram escritos em tom
solene e didático, que provocaram a reação desproporcional de Toplady a qual
nos referimos. Faço questão de reproduzir abaixo a definição que Wesley faz do
Arminianismo em um desses documentos, porque ela deixa claro que a posição de
Wesley era absolutamente fiel à posição arminiana original, que foi defendida
também pelos seus colegas John Fletcher e Walter Sellon. Segue trecho do resumo
de Wesley, intitulado O que é o Arminianismo?:
“Os erros dos quais são acusados os usualmente chamados arminianos
por seus adversários são cinco: 1) negam o pecado original; 2) negam a
justificação pela fé; 3) negam a predestinação absoluta; 4) negam que a graça
de Deus é irresistível; 5) afirmam que o crente pode cair da graça. Quanto aos
dois primeiros pontos, declaro que não são culpados. As imputações são
inteiramente falsas. Nunca houve quem tratasse do pecado original e da
justificação pela fé em termos mais contundentes, claros e terminantes do que
Armínio, nem mesmo o próprio Calvino. Esses dois artigos, portanto, devem ser
excluídos do debate, porque quanto a eles concordam as duas partes. Quanto a
isso, não existe diferença por menor que seja, entre o sr. Wesley e o sr.
Whitefield” (LELIÈVRE, Ibid., p. 250). Ao final do folheto, Wesley destacou
ainda “a piedade de Calvino e de Armínio” e implorou a seus discípulos que não
usassem “o nome de cristãos tão eminentes em sentido tão injurioso” (LELIÈVRE,
Ibid., pp. 250 e 251). Trata-se de um documento honesto e equilibrado, o que só
agrava ainda mais a reação tosca de Toplady.
Após esse episódio, outro acirraria ainda mais o debate entre
calvinistas e arminianos dentro do metodismo: um texto pastoral de Wesley,
escrito também em 1770, em que ele combate o antinomianismo dentro de algumas
comunidades metodistas. Tal texto, mesmo tão simples e bíblico, acabou sendo,
devido ao clima já ruim que havia entre arminianos e calvinistas, mal
interpretado pela corrente calvinista. A condessa Lady Huntingdon acusou Wesley,
injustamente, de “pelagiano”, e classificou seu ensino de “horrível e
abominável”. Wesley respondeu à acusação da condessa no seu sermão ministrado
no culto fúnebre de seu amigo George Whitefield. Nele, Wesley mais uma vez
enfatizou os pontos de convergência entre calvinistas e arminianos, destacando
a doutrina da justificação pela fé e lamentando a distorção feita pelos seus
acusadores, que confundiam – propositadamente ou não – o combate ao
antinomianismo com pregação de Salvação pelas obras.
Em reação ao sermão de Wesley, Lady Huntingdon pediu ao teólogo
José Benson, que dirigia a escola metodista que ela sustentava, que escrevesse
uma resposta ao discurso de Wesley, mas ele recusou. Em represália, Huntingdon
ordenou que todos os arminianos saíssem da escola. Benson, que dirigia a
instituição, foi o primeiro a anunciar sua demissão. Em seguida, Lady
Huntingdon enviou a Bristol uma representação até Wesley, formada de oito
pessoas, para protestar. Após receber e ouvir atentamente às reclamações do
grupo, Wesley publicou um documento enfatizando mais uma vez que nunca
defendera a justificação pelas obras e que seu documento contra o
antinomianismo fora interpretado de forma incorreta por alguns irmãos, mas se
estes achavam que faltara maior clareza no seu texto, ele afirmava mais uma
vez, “solenemente, na presença de Deus”, que “a segurança ou confiança” na
Salvação está apenas “nos méritos de Cristo”, e não nas obras, embora saiba-se
que “ninguém é verdadeiro cristão a não ser que faça boas obras”. A comitiva de
Lady Huntingdon, representada por Walter Shirley, sobrinho e capelão da
condessa, aceitou o texto de Wesley e publicou um documento oficial dizendo-se
“plenamente satisfeita com a explanação, com a qual assentia cordialmente e
estava de acordo”.
Entretanto, antes mesmo dessa reconciliação acontecer, o
extraordinário John William Fletcher de Madeley (1729-1785) já havia preparado
uma série de artigos, que foram publicados em forma de um opúsculo de 98
páginas, defendendo o Arminianismo à luz da Bíblia e demonstrando que o
documento contra o antinomianismo de Wesley não tinha obviamente nada a ver com
Salvação pelas obras e era, sim, além de bíblico, muito claro. Os artigos foram
endereçados a Walter Shirley. Conta Lelièvre que, “ao circular, o escrito de
Fletcher produziu imediatamente uma grande comoção; o autor, já bastante
conhecido como orador sacro, deu-se a conhecer nesse opúsculo como escritor de
distinção” (LELIÈVRE, Ibid., pp. 256 e 257). Logo, quando a comitiva da
condessa voltou de Bristol, a corrente calvinista já havia sofrido um “golpe”
muito forte com os textos de Fletcher, o que fez com que Shirley, em
represália, classificasse desonestamente o documento produzido por Wesley
naquele encontro como uma retratação do líder do metodismo. Ora, em nenhum
momento Wesley se retratara no referido documento, mas Shirley precisava de uma
arma contra os textos desconcertantes de Fletcher, que depois disso continuou a
escrever em resposta a Shirley, e com apoio total de Wesley, provando que o
texto deste obviamente não era retratação nenhuma e derrubando todos os
argumentos contra os arminianos.
Os calvinistas sentiram, então, que era hora de formar uma blitz
para contra-atacar Fletcher. Em 1772, o calvinista Ricardo Hill, irmão do
famoso avivalista metodista Roland Hill, tentou fazer frente a Fletcher,
defendendo a predestinação dentro do conceito calvinista em cinco artigos em
forma de cartas endereçadas ao teólogo metodista. Entretanto, outra vez
Fletcher se saiu vencedor, refutando, “com lógica incontestável e fervor
eloquente”, o determinismo calvinista. Foi a vez então de Toplady e Roland Hill
juntarem forças para tentar rebater Fletcher, mas ambos também seriam
derrotados pela pena do eloquente teólogo arminiano. Frustrado, Toplady volta a
atacar Wesley, que só assistia aos embates, mas é Thomas Oliver que o rebate,
já que Wesley preferiu mais uma vez não responder. A pena de Wesley só voltou a
tocar no tema quando a pena dos irmãos Hill se voltou contra ele. Na ocasião,
Wesley justificaria a volta ao embate dizendo que os escritos de Fletcher o
haviam convencido de que fora “demasiadamente bondoso com os pregadores da
reprovação”. Fletcher, enquanto isso, venceria outro oponente calvinista: John
Berridge (1716-1793), vigário de Everton.
Quando, enfim, esses embates terminaram em 1776, o Arminianismo
ergueu-se vitorioso. Os metodistas calvinistas, que já eram minoritários,
perderam seguidores e resolveram sair do movimento wesleyano, formando
congregações independentes que, mais à frente, ingressaram na Igreja
Congregacional. Entretanto, os efeitos desse debate foram além, sendo sentidos
também no meio evangélico mundial nos anos seguintes, levando o Arminianismo a
se tornar majoritário.
O historiador Robert Southey destaca sobretudo os escritos de Fletcher
como o catalisador da ascensão arminiana: “O floreio de sua linguagem e sua
unção sagrada revelavam a sua origem francesa; mas seu raciocínio era agudo e
claro, e o espírito dos seus escritos era formoso, sendo realmente mestre no
assunto e em tudo que nele estava compreendido”. Lelièvre declara que “a
originalidade de Fletcher nessa controvérsia calvinista lhe granjeou um lugar
de muita distinção”. Já o historiador Richard Watson frisa a repercussão
extraordinária dessa discussão para o evangelicalismo mundial: “Essa
controvérsia produziu importantes resultados. Mostrou aos calvinistas piedosos
e moderados com quanta facilidade podiam compartilhar com o Arminianismo as
mais ricas verdades evangélicas; e produziu, por seu exemplo destemido e
corajoso das consequências lógicas derivadas da doutrina dos decretos, muito
maior moderação naqueles que ainda a admitem, dando origem a algumas das
modificações mais moderadas do Calvinismo no período seguinte, efeitos esses
que perduram até hoje”.
Lelièvre conclui: “Quando a pólvora do combate dissipou-se,
descobriu-se que a predestinação [calvinista] ficara mortalmente ferida e, em
seu lugar, levantara-se vigorosamente o Arminianismo, que fora excomungado pelo
Sínodo de Dort. Mas, ao passo que na Holanda esse sistema teológico se desviara
pouco a pouco [...], na Inglaterra encaminhava-se até a preservação da doutrina
da graça” (LELIÈVRE, Ibid., p. 264).
Outro fator que alavancou ainda mais o Arminianismo nos séculos
seguintes foi o advento do Movimento Pentecostal Moderno, que, devido a suas
raízes metodistas via Movimento da Santidade (Holiness), sempre foi, em sua
maioria, arminiano. Os pentecostais são o maior grupo evangélico do mundo e o
que mais cresce, o que garante que o Arminianismo permanecerá por muito tempo
como a principal corrente protestante.
Para calvinistas e arminianos
Curiosamente, depois que o Calvinismo deixou de ser majoritário no
meio evangélico, passou a ser tratado pelos arminianos da mesma forma que
tratavam o Arminianismo quando eles eram maioria: como uma “heresia
perniciosa”. Ora, é errado ver o Calvinismo dessa forma, a não ser que se trate
do Calvinismo fatalista. O Calvinismo geralmente é compatibilista e, nesse
caso, mesmo sendo ainda um erro, não o é tão grave assim.
O calvinista fatalista é aquele que diz que como Deus já
determinou quem vai ser salvo e quem não vai, é desnecessário evangelizar,
fazer missões ou mesmo se preocupar em ter uma vida de santidade. O calvinista
compatibilista, ao contrário, reconhece plenamente a responsabilidade humana,
mesmo que não consiga explicar como a predestinação e a responsabilidade humana
coexistem perfeitamente, de maneira que ele evangeliza, faz apelo, faz missões
e exorta os crentes a viverem uma vida de santidade. Em outras palavras, o calvinista
compatibilista não diminui a responsabilidade humana, mas vê a coexistência
entre responsabilidade humana e predestinação como uma antinomia, isto é, uma
aparente contradição, assim como ocorre na Doutrina da Trindade e na Doutrina
da Plena Humanidade e da Plena Divindade de Cristo, que são realidades que a
mente humana não pode compreender perfeitamente. Ele acredita que só no Céu
poderá entender esse mistério. O arminiano, por sua vez, só reconhece estas
duas últimas doutrinas como sendo antinomias. Por não encontrar, à luz da
Bíblia, apoio para uma predestinação sem base na presciência divina, ele não vê
como aparente contradição a coexistência entre responsabilidade humana e
predestinação.
Como se vê, toda divergência entre calvinistas não-fatalistas e
arminianos diz respeito apenas à compreensão que eles têm acerca da mecânica da
Salvação, e não a alguma diferença concernente à mensagem ou ao método da
Salvação. Se fosse uma diferença relativa à mensagem ou ao método da Salvação,
aí, sim, a coisa seria gravíssima. Ademais, teríamos que classificar como
“hereges perniciosos” alguns dos maiores nomes do Cristianismo em todos os
tempos (Agostinho, John Bunyan, George Whitefield, Jonathan Edwards, David
Brainerd, Charles Spurgeon, William Carey etc) e a maioria esmagadora dos
protestantes dos séculos 16 ao 19. Ninguém é salvo por entender a mecânica da
Salvação, mas por aceitar, pela graça de Deus, a mensagem e o método da
Salvação. Se fosse preciso, para ser salvo, também entender perfeitamente a mecânica
da Salvação, a maioria esmagadora daqueles que hoje são salvos em Cristo não o
seriam.
Pense, por exemplo, em um crente simples, que mal sabe ler e
escrever, que mal pode entender detalhes da discussão entre calvinistas e
arminianos. Para ser salvo, será que ele precisa entender o que é
Supralapsarianismo, Infralapsarianismo, graça preveniente, initium fidei,
Pelagianismo, Semipelagianismo etc? Claro que não. Basta entender a mensagem e
o método da Salvação: todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus; sem
o perdão dos pecados, você não pode ter comunhão com Deus e receber as bênçãos
divinas, e também está destinado à condenação eterna; Jesus é Deus encarnado,
que veio não apenas para ensinar como devemos viver, mas para morrer por nossos
pecados, e ressuscitou ao terceiro dia para nossa Salvação; se você se
arrepender de seus pecados e aceitar o que Jesus fez por você na cruz para
remissão de seus pecados, e também aceitar o senhorio dEle sobre sua vida,
então terá seus pecados perdoados e a comunhão e a bênção eternas de Deus; você
não é salvo pelas boas obras, mas salvo para praticar boas obras; todo salvo em
Cristo deve procurar viver uma vida de santidade; Jesus voltará e um dia
estaremos para sempre com Ele na eternidade se formos fieis.
Você não é salvo por entender perfeitamente o que ocorreu nos
“bastidores” do mundo espiritual quando você foi salvo – ou seja, se você veio
a Cristo porque isso tinha sido predeterminado por Deus ou se Deus apenas sabia
que isso iria acontecer e então predeterminou, desde a eternidade, que você
receberia todas as bênçãos que estão em Cristo. Você pode morrer sem entender
plenamente como isso se deu e ser salvo. Porém, você nunca será salvo se não
aceitar a mensagem e o método da Salvação.
Em 1971, em uma conferência em Schloss Mittersill, na Áustria, o
célebre pregador calvinista David Martyn Lloyd-Jones (1899-1981) defendeu o
mesmo que este escriba: o óbvio de que a diferença entre Arminianismo e
Calvinismo diz respeito apenas ao mecanismo da Salvação e não ao caminho da
Salvação, razão pela qual, ele, um calvinista, defendia que era errado
considerar o Arminianismo condenável ou heresia perniciosa; e enfatizava ainda
outra obviedade: Arminianismo não tem nada a ver com Pelagianismo. Que bom
seria se todo calvinista tivesse essa percepção! Infelizmente, há aqueles que,
além de confundirem Arminianismo com Pelagianismo ou Semipelagianismo, colocam
a mecânica da Salvação no mesmo patamar da mensagem e do método da Salvação,
confundindo alhos com bugalhos e tratando arminianos como “hereges
perniciosos”.
Por outro lado, arminianos muitas vezes se esquecem que o
Calvinismo prevalecente na história, sobretudo a partir do século 19 em diante,
é o Calvinismo compatibilista, que era a posição de William Carey (1761-1834),
o “Pai das Missões Modernas”, e Charles Spurgeon (1834-1892), “O Príncipe dos
Pregadores”. Ambos combateram o Calvinismo fatalista e viam como homens de Deus
os arminianos John e Charles Wesley, assim como compatibilistas de hoje admiram
também arminianos como Dwight L. Moody, A. W. Tozer, Leonard Ravenhill, C. S.
Lewis e Billy Graham.
Em 1792, William Carey publicou o livro Inquiry into the
Obligations of Christians to Use Means for the Conversion of the Heathen
(“Investigação sobre as obrigações dos cristãos de usar meios para a conversão
de pagãos”), mas encontrou resistência entre seus pares batistas, que eram
calvinistas como ele. Para a maioria destes, a posição de Carey entrava em
conflito com as crenças calvinistas. Mas, Carey insistiu, levando sua visão
missionária a uma reunião de pastores e propondo que, no encontro seguinte,
discutissem a tarefa de levar o Evangelho aos pagãos, diante do que o pastor
John Ryland (1753-1823), que presidia a reunião, ordenou que Carey se sentasse,
dizendo: “Quando agradar a Deus converter pagãos, Ele o fará sem a sua nem a
minha ajuda!”.
Como Carey era mais fiel à Bíblia do que aos dogmas calvinistas,
ele foi fazer missões e deu início às Missões Modernas, criando a Sociedade
Batista Missionária. E o próprio Ryland, depois de ler a biografia do
missionário calvinista David Brainerd (1718-1747) escrita por Jonathan Edwards
(1703-1758), passou a ser mais equilibrado, inclusive tornando-se amigo e
apoiador de Carey, que tinha como referências John Wesley e David Brainerd.
Sobre os embates de Spurgeon com os calvinistas fatalistas de seus
dias, há uma obra muito boa: Spurgeon vs.
Hyper Calvinists: The Battle for Gospel Preaching (“Spurgeon versus os
Hiper-calvinistas: a Batalha da Pregação da Palavra”), 1995, da Banner of
Truth. Comentando 1 Timóteo 2.3-6, que afirma que Deus deseja “que todos os
homens sejam salvos” e Cristo se entregou “por todos”, escreve Spurgeon: “E
então? Tentaremos colocar um outro sentido no texto do que já tem? Penso que
não. É necessário, para a maioria de vocês, conhecer o método comum com qual os
nossos amigos calvinistas mais velhos lidaram com esse texto. ‘Todos os
homens’, dizem eles, ‘quer dizer alguns homens’, como se o Espírito Santo não
pudesse ter falado ‘alguns homens’ se quisesse falar alguns homens. ‘Todos os
homens’, dizem eles, ‘quer dizer alguns de todos os tipos de homens’, como se o
Senhor não pudesse ter falado ‘Todo tipo de homem’ se quisesse falar isto. O
Espírito Santo, através do apóstolo, escreveu ‘todos os homens’, e sem dúvida
isso quer dizer ‘todos os homens’. Estava lendo agora mesmo uma exposição de um
doutor muito apto o qual explica o texto de tal forma que muda o sentido; ele
aplica dinamite gramatical no texto e explode o texto ao expô-lo. [...] O meu
amor pela consistência das minhas próprias doutrinas não é de tal tamanho a me
autorizar a alterar conscientemente um só texto da Escritura. Respeito
grandemente a ortodoxia [calvinista], mas a minha reverência para a inspiração
é bem maior. Prefiro parecer cem vezes ser inconsistente comigo mesmo do que
ser inconsistente com a Palavra de Deus” (SPURGEON, Metropolitan Tabernacle
Pulpit, 1 Timothy 2.3,4, volume 26, pp. 49-52).
Não por acaso, Spurgeon é autor de um livro intitulado The Soul Winner (“O Ganhador de Almas”),
no qual incentiva cada crente a se tornar um ativo e ousado ganhador de vidas
para Cristo. Spurgeon era assim porque o seu Calvinismo era compatibilista,
como ele mesmo definiu certa vez: “Que Deus predestina e que o homem é
responsável são duas coisas que poucos enxergam. Acredita-se que são
inconsistentes e contraditórias, mas elas não são. É simplesmente culpa do
nosso julgamento fraco. Duas verdades não podem ser contraditórias. Se, então,
acho ensinado em um lugar [da Bíblia] que tudo foi pré-ordenado, é verdade; e
se achar em outro lugar [da Bíblia] que está sendo ensinado que o homem é
responsável por todas as suas ações, é verdade; e é a minha grande tolice que
me leva a imaginar que duas verdades podem se contradizer” (SPURGEON, C. H.,
New Park Street Pulpit, volume 4, 1858, p. 337). Enfim, não devemos cometer a
tolice de tratar nossos irmãos calvinistas compatibilistas, não-fatalistas,
como “hereges perniciosos”, o que nunca foram, mas também devemos nos
conscientizar que o Arminianismo é, sem dúvida alguma, a melhor explicação, à
luz da Bíblia, para a mecânica da Salvação. Não é verdade que “o Calvinismo
honra ainda mais a Deus do que o Arminianismo”, como calvinistas mais
fervorosos declaram. Tanto o Calvinismo compatibilista como o Arminianismo
genuíno honram a Deus, sendo que o Arminianismo o faz de uma forma muito mais
coerente à luz do texto sagrado, sem forçar alguma aparente contradição, alguma
antinomia entre soberania de Deus e responsabilidade humana, e sempre à luz da
Bíblia. Ensinemos, pois, o Arminianismo.
Fonte: Revista Obreiro nº 68. CPAD 2015,
http://www.editoracpad.com.br/hotsites/obrasdearminio/
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