segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O Problema dos Cananeus - Parte 2

 

Nós não odiamos o pecado – Por isso não conseguimos entender o que aconteceu com os Cananeus

Um Adendo aos Argumentos do “Genocídio Divino” no Antigo Testamento

[PARTE II]

 

Por Clay Jones

Christian Apologetics Program

Biola University

La Mirada, California

 

O Pecado dos Cananeus

 

Deus diz a Israel em Deuteronômio 9:5 que não era por causa da “justiça ou integridade” de Israel, mas “por causa da maldade dessas nações” que ele estava expulsando os Cananeus. A Bíblia é inequívoca em relação aos pecados que eles cometeram, incluindo idolatria, incesto, adultério, sacrifício de crianças, homossexualidade e bestialidade.

 

A Prática da Idolatria entre os Cananeus

 

Não há polêmicas aqui, os Cananeus adoravam outros deuses e não adoravam Yahweh. Quando Israel passa a adorar como os Cananeus, Yahweh envia seus porta-vozes proféticos e declara, por exemplo: “Houve alguma nação que trocasse os seus deuses, ainda que não fossem deuses? Todavia o meu povo trocou a sua glória por aquilo que é de nenhum proveito. Espantai-vos disto, ó céus, e horrorizai-vos! Ficai verdadeiramente desolados, diz o Senhor.” (Jr 2:11–12; cf. 2:8).[6] O Senhor zomba desses deuses feitos à mão; deuses que não podem falar e que precisam ser carregados porque não podem andar.[7] O AT freqüentemente os denuncia como nada mais do que paus ou cerâmica feitos por mãos humanas que não podiam “ver, ouvir, comer ou cheirar” (Deuteronômio 4:28). Embora impotentes para dar vida de fato, Yahweh declara que tais ídolos corroem fortemente aqueles que os seguem e os imitam: se você seguir o que é inútil, você se tornará inútil (cf. Jr. 2: 5, 10: 8 e Jn. 2:8).[8]

A idolatria não é um mero passatempo religioso particular e individualista que uma pessoa faz (por exemplo, “ele cometeu um ato de idolatria”). Pelo contrário, a idolatria pode formar toda uma identidade de grupo e um estilo de vida, porque quem comete idolatria o faz por ser idólatra. A idolatria é uma forma de adoração porque envolve atribuir atenção e afeto a algo considerado digno. A adoração, independentemente de seu objeto, é inescapavelmente formadora de toda uma vida.

Além disso, o conceito de idolatria se presta a uma mentalidade e cultura politeístas que tem consequências sociais generalizadas. Em tal contexto, “adorar o único e verdadeiro Deus” é uma ideia moral, cultural e socialmente pouco persuasiva (se não também repulsiva). Dentro do politeísmo, uma pessoa não pode ser idólatra. Se o politeísmo fosse verdadeiro, não faria sentido de que forma alguém ou algum ato poderia ser considerado idólatra. Além disso, um seguidor do politeísmo pode até se envolver alegremente em falsidades (por exemplo, adorar divindades que são contraditórias) ou chamar algo “antinatural” de “natural” (por exemplo, bestialidade), o que é evidenciado pela cultura Cananéia.

Os Cananeus levam a sério o testemunho de Yahweh no AT e sua revelação, pelo menos para transformar intencionalmente a representação bíblica de Yahweh em um fracote castrado. Em sua dissertação na Universidade de Chicago, Ulf Oldenburg resume as consequências formativas do politeísmo Cananeu:

 

Na época do Êxodo hebraico, Ba'al já havia usurpado o poder de El [um dos nomes de Yahweh em Hebraico] em Canaã. Quando El perdeu a força dinâmica expressa em seu nome na religião Cananéia, ele se perdeu. A maioria dos textos Ugaríticos o descreve como um pobre covarde, um covarde que abandona a justiça para se salvar, o desprezo das deusas. Um texto [Cananeu] descreve El como um bêbado sujo com "seus excrementos e urina" após um banquete.[9]

 

Se o politeísmo é uma maneira de ser idólatra, mesmo que dentro do politeísmo ser idólatra pareça estranho e incoerente, seria surpreendente que a idolatria pudesse afetar negativamente a capacidade de uma pessoa avaliar com responsabilidade? Sob tal influência, o “ciúme divino” e o ódio à idolatria podem até parecer o resultado de um complexo de inferioridade divina necessária, mesmo quando esse não é o caso, ou comandos contra a idolatria podem soar como o resultado de um desmancha-prazeres cósmico que é um intrometido empenhado em controlar criaturas livres e seus prazeres, mesmo que essa não seja a intenção do ser divino. A idolatria acaba assaltando as pessoas com um delírio, mesmo diante das evidências disponíveis em contrário.[10]

Acho que Richard Dawkins exemplifica essa confusão quando reclama que “A ira monumental de Deus sempre que seu povo flertava com um deus rival remete ao pior tipo de ciúme sexual. . . .” [11] Mas, alguém acha que se a esposa de Dawkins o deixasse por um boneco de gengibre feito por ela mesma, e então ela começasse a dizer a todos que Dawkins gostava de brincar com seus excrementos, será que Dawkins toleraria a caracterização de seus sentimentos como não mais do que “ciúme sexual da pior espécie”?

Falando sério, porém, tentei mostrar que a idolatria Cananéia - conforme evidenciado por seu politeísmo - não era um assunto mesquinho, individualista e privado. Essa mentalidade era teologicamente conducente (se não motivadora) à formação de práticas Cananéias, incluindo as práticas de incesto, adultério, sacrifício de crianças, homossexualidade e bestialidade, de modo que essas práticas não são incoerentes com a idolatria Cananéia.

 

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Fonte:

 

PhilosoPhia Christi Vol. 11, No. 1 © 2009, pp. 52 – 72

 

Tradução Walson Sales

 

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Notas:

[6] Jr. 2:11–12. todas as citações das escrituras da Nova Versão Internacional, salvo indicação em contrário. [isso no texto original. O tradutor do artigo citou a ACF na maioria dos casos].

[7] Jr. 1:16 e 8:2–5.

[8] Com relação à idolatria, Joseph Gorra fez este comentário para mim: “No entanto, como é tragicamente irônico, mas não acidental, que na própria maneira de atribuir valor a coisas sem valor, o que é sem valor confere inutilidade àqueles que atribuem o devido valor. Que vazio cíclico!”

[9] CH. Virolleaud, “Un Conte populaire de ras shamra: Le banquet du Père des dieux,” Comptes rendus du Groupe linquistique d'Études chamitosémitiques 9 (maio de 1962): 51–2, citado em Ulf Oldenburg, The Conflict Between El and Ba'al em Canaanite Religion (Leiden, Holanda: E. J. Brill, 1969), 172. Oldenburg comenta mais tarde que “El e Yahweh eram originalmente idênticos e não dois deuses originalmente diferentes que foram identificados secundariamente. Além disso, concluímos que Yahweh foi identificado com El em sua glória e onipotência originais, antes que o conhecimento de El fosse corrompido pela apostasia Cananéia” (175). Em uma nota de rodapé nesta mesma página, Oldenburg comenta que “tive que mudar minha opinião a esse respeito” (ver também 183-4). Assim também Marvin Pope: “Na medida em que YHWH foi identificado com El, os Israelitas certamente não reconheceram ou admitiram tal degradação representada nos mitos Ugaríticos. . . . A luta entre o Yahwismo e o Baalismo em Israel foi precedida por vários séculos em Ugarit por um conflito entre El e Baal no qual o Deus mais jovem foi vitorioso.” El foi “banido” para o “mundo inferior” por Baal (Marvin H. Pope, El in the Ugaritic Texts [Leiden, Holanda: E. J. Brill, 1955], 104).

[10] Ao contrário das explicações delirantes do ciúme divino, veja Erik Thoennes, Godly Jealousy: A Theology of Intolerant Love (Escócia: Christian Focus Publications, 2005).

[11] Richard Dawkins, The God Delusion (Boston: Houghton Mifflin, 2000), 243. Depois, Dawkins escreve: “É impossível não se assombrar com a visão tão extraordinariamente draconiana que se tem do pecado de flertar com deuses rivais. . . . A farsa tragicômica do ciúme maníaco de Deus contra outros deuses reaparece constantemente em todo o Antigo Testamento.” (246).

 

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