quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

O Problema dos Cananeus - Parte 3

 

Nós não odiamos o pecado – Por isso não conseguimos entender o que aconteceu com os Cananeus

Um Adendo aos Argumentos do “Genocídio Divino” no Antigo Testamento

[PARTE III]

 

Por Clay Jones

Christian Apologetics Program

Biola University

La Mirada, California

 

A Prática de Incesto entre os Cananeus

 

Como todos os panteões do Antigo Oriente Próximo (AOP), o panteão Cananeu era incestuoso. O deus El (considerado o pai dos deuses) teve setenta filhos com Aserá. Dessa união nasceu Baal[12] e sua irmã Anat com quem Baal tinha relações sexuais. Depois que Baal relatou a seu pai El que Aserá havia tentado seduzi-lo, El encorajou Baal a fazer sexo com ela para humilhá-la, o que Baal fez.[13] Baal também teve como consorte sua primeira filha, Pidray.[14] Nenhum desses atos incestuosos dos deuses é apresentado de forma pejorativa [nos contos pagãos dos Cananeus].

Embora as primeiras leis Cananéias prescrevessem a morte ou o banimento para a maioria das formas de incesto, após o século XIV a.C., as penas foram reduzidas a não mais do que o pagamento de uma multa.[15] Essa descriminalização do incesto coincidiu com os séculos entre a palavra de Deus a Abraão de que os pecados daqueles que ali viviam “ainda não atingiram sua medida total”[16] e o Êxodo. Ao adiar o julgamento, Deus expressou paciência e demonstrou que Seu julgamento “não é caprichoso nem injustificado”. [17]

Mesmo que o restante do AOP tenha legislado contra o incesto (afinal, resulta sempre em crianças deformadas), isso não significa que as fantasias incestuosas fossem consideradas abomináveis. Por exemplo, considere o livro de sonhos Egípcio escrito para homens que lista muitos tipos de sonhos e os presságios associados a eles. Começa com “Se um homem se vê em um sonho. . .

 

. . . tendo relações sexuais com sua mãe: Bom. Seus companheiros vão ficar com ele.

. . . tendo relações sexuais com sua irmã: Bom. Isso significa que ele herdará algo.

. . . tendo relações sexuais com uma mulher: Ruim. Significa luto.[18]

 

Lembre-se de que Sodoma era uma cidade Cananéia e, depois de ter sido destruída por sua maldade, a próxima coisa que lemos é que as filhas de Ló embebedam Ló e fazem sexo com ele.[19] Ló e suas filhas imitam as práticas sexuais da cultura Cananéia e os Cananeus (e não acidentalmente) imitam suas divindades.

 

A Prática do Adultério entre os Cananeus

 

A religião Cananéia, como a de todas do AOP, era uma religião de fertilidade que envolvia a prática de sexo no templo.[20] Inanna/Ištar, também conhecida como a Rainha dos Céus, “tornou-se a mulher entre os deuses, patrona do erotismo e da sensualidade, do amor conjugal e também do adultério, das noivas e prostitutas, travestis e pederastas.”[21] Jonathan Tubb, curador da Síria-Palestina no Departamento da Ásia Ocidental do Museu Britânico, aponta que “de acordo com textos de Ugarit, a prática do culto envolvia sacerdotes provenientes de famílias sacerdotais e também prostitutas sagradas, tanto homens quanto mulheres”. Tubb diz que Anat era "promíscua" e que "El seduziu duas mulheres que deram à luz Dawn e Dusk".[23]

Os sacerdotes provavelmente participavam de seus rituais nus, e o sexo era certamente uma grande parte das cerimônias.[24] Como escreve o professor Martti Nissinen da Universidade de Helsinque, “o contato sexual com uma pessoa cuja vida inteira foi devotada à deusa era equivalente à união com a própria deusa.”[25]

A história de El praticando sexo com duas mulheres (ou deusas) termina com as seguintes instruções: “que seja repetido cinco vezes pela companhia e pelos cantores da assembléia”.[26] El foi sacramentalmente experimentado pela comunidade nas orgias sexuais do culto da fertilidade que os profetas Hebreus tão veementemente denunciaram.”[27]

Isso não quer dizer que o adultério não fosse contra a lei. Em grande parte, era - para a mulher casada. Para o homem, não era ofensa fazer sexo com uma mulher solteira. “O adultério era então uma ofensa não contra a própria esposa de um homem, mas contra o marido da mulher culpada, e ele poderia tolerar e aceitar uma compensação; mas a mera fornicação não era ofensa para o homem, casado ou solteiro. Havia então liberdade quase absoluta para o marido, mas não para a esposa.”[28]

Lise Manniche, professora de Egiptologia na Universidade de Copenhague, aponta que no Egito o adultério “floresceu nas classes mais baixas”.[29] Gwendolyn Leick, pesquisadora de Assiriologia da University of the Arts de Londres, escreve que, “na Mesopotâmia, onde todo comportamento sexual estava sob os auspícios de Inanna/Ištar, atos sexuais fora do casamento podiam ser tolerados e até certo ponto institucionalizados. A deusa está ligada à prostituição em várias composições.”[30] Claro, não há razão para supor que os Cananeus, situados entre o Egito e a Mesopotâmia, não estivessem fazendo o mesmo.

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Fonte:

 

PhilosoPhia Christi Vol. 11, No. 1 © 2009, pp. 52 – 72

 

Tradução Walson Sales

 

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Notas:

[12] Outros textos dizem que ele veio de Dagon.

[13] Para a história de Baal fazendo sexo com Aserá, veja: “El, ashertu and the storm-god”, trad. Albrecht Goetze, ed. James B. Pritchard, em The Ancient Near East: Supplementary Texts and Pictures Relating to the Old Testament (Princeton: Princeton University Press, 1969), 519.

[14] W. F. Albright, Yahweh and the Gods of Canaan: A Historical Analysis of Two Contrasting Faiths (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1968), 145.

[15] Isso coincide bem com os que dão uma data posterior para o Êxodo. O debate sobre a data do Êxodo foi recentemente retomado no Journal of the Evangelical Theological Society (ver particularmente Rodger C. Young e Bryant G. Wood, “A Critical Analysis of the Evidence from Ralph Hawkins for a Late-Date Exodus - Conquest,” Journal of the Evangelical Theological Society 51 [2008]: 225–44, e Ralph K. Hawkins, “The Date of the Exodus-Conquest Is still an Open Question: a response to Rodger Young and Bryant Wood,” Journal da Evangelical Theological Society 51 [2008]: 245–66). Harry Hoffner escreve que a partir do século XV ou XIV a.C. “várias cidades e vilas dentro da esfera de controle dos Hititas tinham diferentes tradições em relação à punição de hurkel [ofensa sexual relativa a incesto ou bestialidade]. Alguns executavam o(s) ofensor(es), outros baniam. Do século 17 ao 14, nenhum documento Hitita registra qualquer opção para uma cidade além de executar ou banir.” Mas, escreve Hoffner, “é, portanto, muito interessante que recentemente tenham aparecido tabuletas e entradas de catálogos de bibliotecas para tabuinhas contendo rituais para remover a impureza de um homem acerca do pecado de bestialidade e incesto. Pois isso constitui evidência primária para um maior desenvolvimento na atitude legal-religiosa em relação ao incesto e à bestialidade entre os Hititas” (Harry a. Hoffner, Jr., “Incest, sodomy and Bestiality in the Ancient Near East” Orient and Occident: Essays Presented to Cyrus H. Gordon on the Occasion of his Sixty-fifth Birthday, ed. Harry A. Hoffner, Jr. [Alemanha: Neukirchen Vluyn, 1973], 85). Hoffner aponta que, com o tempo, um pássaro era “oferecido não a uma divindade, mas por um aspecto do pecado ou seu efeito: pelo pecado, pela maldição, pela raiva, pelo choro; ou por algum aspecto da esperada reconciliação: pela paz (takšul).” Depois do século XIV, as leis mudaram para que “o ofensor humano pudesse continuar a viver na cidade sem trazer sobre ela a ira dos deuses”(90). “O mesmo padrão de amenizar as penalidades mais antigas e rigorosas e substituí-las por multas simples pode ser visto repetidas vezes nas próprias leis Hititas”(90n). Isso também coincide com o que William F. albright disse que estava acontecendo no Egito na época do Êxodo, onde “reis Egípcios como Akhenaton e Ramsés II se casaram com uma ou mais de suas filhas nos séculos XIV e XIII a.C.” (albright, Yahweh and the Gods of Canaan, 128).

[16] Gn 15:16.

[17] Kenneth A. Matthews, Genesis 11:27–50:26, The New American Commentary, vol. 1b (Nashville, TN: Broadman e Holman, 2005), 175.

[18] Papyrus Chester Beatty III recto (BM10683) de mais ou menos 1.175 a.C., citado em Lise Manniche, Sexual Life in Ancient Egypt (London: Routledge, 1987), 100.

[19] Gn. 19:30–8.

[20] Morriston aponta que não ouvimos sobre a prostituição no templo de Ugarit, mas desde que o AT testifica disso e foi algo desenfreado durante o resto do AOP, então o que mais precisamos? Eu chamo isso de sexo no templo, em vez de prostituição no templo, para evitar a controvérsia recente sobre se era prostituição ou apenas sexo. alguns hoje argumentam que nunca foi prostituição, mas acho que seus argumentos fogem da questão. Por exemplo, Stephanie Lynn Budin escreve: “O que é importante lembrar, no entanto, é que a prostituição sagrada não existia” (Budin, The Myth of Sacred Prostitution in Antiquity [Londres: Cambridge University Press, 2008], 3). O que Budin quer dizer é que a prostituição sagrada nunca, jamais, aconteceu em todo o AOP. Nem uma vez. Mas argumentar que a profissão mais antiga do mundo nunca esteve envolvida, onde abundam as práticas sexuais e a ganância, está quase além da compreensão. A única maneira de argumentar que a prostituição sagrada nunca ocorreu é minimizar absolutamente todos os relatos dela e a única maneira de fazer isso é já saber que ela nunca aconteceu e, portanto, argumentar em círculos. Mas Budin faz isso. Ela desconsidera o testemunho cristão primitivo de Paulo a Clemente, de Atanásio e Agostinho como nada mais do que uma polêmica autointeressada apresentando o paganismo “sob a pior luz possível” (261) e, portanto, conclui que “referências à prostituição sagrada” não são “evidências históricas” mas “retórica condenatória” (261). “Duvido que muitos dos autores que contribuíram para o mito da prostituição sagrada acreditassem inteiramente no que escreveram. . . . Mas, no final das contas, o que é mais importante para o surgimento do mito é que seus leitores acreditaram no que escreveram. . .” (286). Ela também descarta o relato de Heródoto simplesmente afirmando que ele o inventou. Ela admite que “extensas escavações arqueológicas . . . mostraram que muitos dos relatos de Heródoto estavam corretos. . . .” Mas ela argumenta que Heródoto deve ter inventado parte disso. Seu exemplo “mais claro” dessa alegada invenção ocorre no livro 3.79-83, “em que Heródoto relata o debate travado por três Persas sobre a melhor forma de governo: democracia, oligarquia ou monarquia. O fato de Heródoto ter acesso a essa “transcrição” parece improvável ao extremo, enquanto os argumentos apresentados parecem muito mais com debates políticos Gregos. . . .” (61).

[21] Gwendolyn Leick, Sex and Eroticism in Mesopotamian Literature (Nova York: Routledge, 1994), 57 (ênfase no original).

[22] Jonathan N. Tubb, The Canaanites (Norman, OK: University of Oklahoma Press, 1998), 76.

[23] Tubb, The Canaanites, 74. Não está claro se eles eram deuses ou mortais. Ver Marvin H. Pope, El in the Ugaritic Texts (Leiden, Holanda: E. J. Brill, 1955), 35–6.

[24] Walther Hinz, The Cambridge Ancient History: History of the Middle East, 3ª ed., ed. I.E.S. Edwards, C. J. Gadd e N. G. L. Hammond (Londres: Cambridge University Press, 1971), vol. 1, parte 2, 672. “Desde os primeiros dias, inúmeros sacerdotes com os servos estavam ligados aos edifícios do templo na acrópole de Susã. aparentemente, eles realizaram suas cerimônias nus, a julgar pelos selos Elamitas e vários pequenos achados do estrato D de Susã em diante - isso é antes da época do império Acadiano. Uma escultura de betume da época mostra sacerdotes nus com um cordeiro sacrificado, coroados com um par de cobras. Em um selo do governador Eshpum (cerca de 2.300, no reinado de Manishtusu), os sacerdotes são reconhecíveis vestindo nada além de uma coroa de chifres e, em alguns casos, uma cobertura de lombo em forma de cobra.” Ver também H. Ringgren, “Kohen,” no Theological Dictionary of the Old Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1995), 7:63: “No templo de Inanna, havia eunucos e prostitutas para o culto da deusa do amor. As primeiras representações pictóricas mostram que os sacerdotes costumavam ficar nus quando realizavam seus deveres.”

[25] Martti Nissinen, Homoeroticism in the Biblical World: A Historical Perspective, trad. Kirsi Stjerna (Minneapolis: Fortress, 1998), 33.

[26] John Gray, The Legacy of Canaan (Leiden, Holanda: E. J. Brill, 1965), 101, 102.

[27] Ibid., 101.

[28] Godfrey Rolles Driver e John C. Miles, The Assyrian Laws (Alemanha: scientia Verlag Aalen, 1975), 38.

[29] Manniche, Sexual Life in Ancient Egypt, 60.

[30] Leick, Sex and Eroticism in Mesopotamian Literature, 151. Em um diálogo entre um homem e Nanâ, ele diz a ela: “Quando (você) se curva, os quadris são doces.” “Quando estou de pé contra a parede – custa um cordeiro, quando me curvo custa um shekel e meio'” (B. Alster, “Two sumerian short Tales and a Love Song Reconsidered,” Zeitschrift für Assyriologie 82 [1993]: 186–201, citado em Leick, Sex and Eroticism in Mesopotamian Literature, 149). Leick continua escrevendo que “Aqui temos um caso que parece desprovido de sentimento romântico ou paixão, já que o ato sexual se torna uma transação a ser paga” (150). Para saber mais sobre prostituição, consulte Leick, Sex and Eroticism in Mesopotamian Literature, 162.

 

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